- O senhor é o amigo de Teobaldo, não é verdade?
- Sou eu mesmo.
- O Coruja, não?
- Justamente.
- Que favor deseja pedir?
- Que a senhora não faça a desgraça do nosso amigo.
- Como?
- Desmanchando-lhe o casamento.
- Ele então já lhe falou nisso?
- Já, e eu vim pedir à senhora que tenha pena do pobre rapaz.
- E ele teve pena de mim, porventura? Ele não calculou que com esse casamento fazia a minha desgraça? Não se lembrou de que há já um bom par de anos que nos amamos e eu não poderia de braços cruzados vê-lo atirar-se nos de outra mulher?... Ele não calculou tudo isso?
- Mas é necessário, replicou André.
- Para quem? perguntou a rapariga.
- Para ele.
- Pois também é necessário para mim que ele não case.
- Não tanto...
- Não tanto? Ora essa! Por que?
- Porque a senhora já tem, boa ou má, a sua vida constituída, e ele precisa fazer um futuro, precisa arranjar uma posição.
- Ora!
- E que talvez a senhora não esteja bem informada, as coisas nunca se acharam para ele tão ruins! Teobaldo está em uma situação crítica, muito critica; se não consegue realizar este casamento, fica perdido, perdido para sempre, e, como lhe conheço bem o gênio, receio pela vida dele!...
- Outro tanto não faz ele a meu respeito.
- Ah! mas a senhora não se vê nos mesmos apuros...
- Engana-se, meu amigo, estou até em muito piores condições. Todo este luxo que o senhor tem defronte dos olhos não significa opulência, significa miséria!... Sou mais infeliz do que qualquer das minhas companheiras, porque tenho coração, porque sinto e conheço o terreno em que piso, e sei avaliar cada passo que dou neste tristíssimo caminho de minha vida! Ah! vêem-me rir; vêem-me zombar de tudo e de todos, e no entanto só eu sei o que vai cá por dentro! Sofro e sofro mais do que ninguém! Cada beijo que tiro dos meus lábios para vender, é mais uma fibra que me estala nalma! Oh! daria todo o meu sangue para não ser quem sou!
O Coruja principiava a comover-se.
- Mas... prosseguiu Leonília, o senhor no fim de contas tem toda a razão: meu amor não é como o amor das outras pessoas, o meu amor, em vez de elevar, humilha e rebaixa! Quanto mais delicada, quanto mais escrava e amiga me fizer de Teobaldo, tanto mais o prejudico! Tem toda a razão! E indispensável que eu me afaste dele por uma vez! E preciso que eu acorde deste sonho para cair de novo na triste realidade do meu destino! Que importa que isso agrave os meus sofrimentos; que os torne perigosos; que os torne fatais?... Que importa, se nada lucram os outros com a minha vida ou perdem com a minha morte?... Ele quer abandonar-me? Pois não! faz o seu dever obrará como um "rapaz de juízo"! Todos os homens sérios e refletidos aplaudirão esse ato! Ele quer casar? Nada mais justo! O casamento é a moral, é a ordem, é a dignidade no amor! Pois alguém lhe perdoaria abandonar um casamento vantajoso só para impedir que sucumba uma desgraçada, uma mulher perdida? Ninguém, decerto! Ah! tudo tem seu tempo! Amou-me enquanto podia e precisava amar-me; depois nada mais tem que fazer a meu lado e vai buscar o que lhe convém, o que serve para o seu futuro! Aqui não se trata de mim; trata-se dele apenas; eu que não fosse tola! Quem me mandou tomar a sério o que não devia passar de uma brincadeira, de um capricho? Quem me mandou a mim sonhar com felicidades que me não pertencem?... Pois não devia eu calcular logo que as desgraçadas de minha espécie só tem direito à libertinagem, ao vício e à eterna degradação?...
E Leonília rompeu em soluços.
Não se mortifique... aconselhou o Coruja, sem achar o que dizer.
- Ah! sou muito, muito desgraçada! Ninguém poderá calcular o quanto sofre uma mulher nas minhas condições, quando ela não sabe ser quem é e quer se dar à fantasia de revoltar-se contra o seu próprio meio! Por todos os lados sempre a mesma lama: o que se come, o que se veste, o que se gasta, é tudo prostituição; nada que não tenha a mancha de podre! E no entanto uma coisa boa e pura me restava ainda no meio de tanta imundícia: era o meu amor por Teobaldo; esse não tinha sido contaminado pelo resto... Quando eu me sentia aviltada por tudo e por todos, refugiava-me nele, lembrava-me de que o amo sem interesses mesquinhos, sem hipocrisias, nem baixezas; e esta idéia me fazia por instantes esquecer de mim mesma, esta idéia como que me transformava aos meus próprios olhos, e eu me supunha menos só no mundo e menos prostituta! Agora, querem arrebatá-lo; querem tomar-me o único pretexto que eu tinha para viver... pois levem-no! Mas, oh! por quem são! deixem-me morrer primeiro! Não há de custar tanto!
- Não pense nisso!
- E do que me serve a vida sem Teobaldo?... E que o senhor não conhece, não pode imaginar o que é a existência de nós outras, mulheres perdidas! E simplesmente horrível! Hoje ainda encontro quem me ampare, porque não estou de todo acabada; mas amanhã os homens principiarão a desertar e as suas vagas representarão mil necessidades - depois a moléstia, a fome completa e afinal - "Uma esmola por amor de Deus!" Eis aí o que me espera, como espera a todas as minhas iguais! Atravessamos uma existência de vergonhas para acabar num hospício de idiotas ou num hospital de mendigos! Pois bem! com a idéia em Teobaldo, eu me esquecia desse futuro implacável; bem sei que ele nunca me recolheria de todo à sua guarda... Quem sou eu para merecer tanto?.. . mas dizia comigo "Ele, coitado, tem-me amor, nada me pode fazer por ora; mais tarde, porém, quando me vir totalmente desamparada, virá em meu socorro e não consentirá que eu morra como um cão sem dono !"
- E quem lhe disse que ele não olhará pela senhora?... Por que o há de supor tão mau?
- Ah! Mas uma vez casado, a coisa muda logo de figura... Não há homem que se não modifique deixando o estado de solteiro! Quando eles até então só amam a mulher com que se casam, mal a possuem esquecem-na por outra; e, se antes do casamento já se dedicavam a qualquer amante, será esta sacrificada à legítima esposa. Esta é a lei geral; esta há de ser a lei de Teobaldo!
- Mas, segundo me parece, isso não impede que ele seja eternamente grato aos desvelos que a senhora lhe dedicou.
- Sim, creio, e é justamente por esse motivo que eu nada esperarei dele depois do casamento. Uma mulher aceita a compaixão seja de quem for e pelo que for, menos do seu amado, em substituição da ternura.
- Pois se lhe repugna aceitá-la das mãos dele, pode recebe-la das minhas; comprometo-me a olhar pela senhora.
Leonília, ao ouvir isto, voltou-se de todo para o Coruja e mediu-o em silencio com os olhos ainda congestionados pelo choro. "Que significaria aquela proposição?..."
- O senhor tenciona tomar-me à sua conta?... perguntou ela surpresa. Tenciona fazer-se meu amante?
André tornou-se vermelho e balbuciou:
- Está louca?
- Mas não é essa a proposta que acaba de fazer?
- Eu lhe ofereci apenas o meu auxílio pecuniário...
- Quer ser então o meu protetor?
- Quero opor-me à desgraça de Teobaldo.
- Quanto o senhor é amigo daquele ingrato!
- Se a senhora se acha disposta a sair do Rio de Janeiro, arranja-se-lhe o necessário para a viagem. Concorda?
- Sim; creia, porém, que é mais pelo senhor do que por ele.
- Obrigado. Amanhã mesmo lhe chegará o dinheiro às mãos. Adeus.
Leonília foi acompanhá-lo até à porta e o Coruja saiu para ir ter com Teobaldo.
- Bonito! exclamou este, quando o amigo lhe prestou contas da sua comissão - Fizeste-la bonita!
- Como assim?
- Pois tu foste prometer dinheiro à mulher? Não sabes que não tenho onde ir buscá-lo?
- Dividiremos a despesa... eu posso arranjar a metade. Creio que, se lhe mandarmos uns duzentos mil réis.
- Duzentos mil réis! Isso nem dobrado vale nada para ela! Não conheces esta gente! Foi o diabo!
- E quanto entendes tu que é necessário dar-lhe?
- Sei cá! Nunca menos de cem libras esterlinas!
- Um conto de réis!
- Com menos disso duvido que ela se vá embora!
- Há de se lhe dar um jeito! Não te aflijas.
- E que eu estou sem vintém!
- Arranja-se...
- Não admito que te sacrifiques tão estupidamente! Ora essa!
- Descansa que não me sacrificarei.
Mas, ao tirar-se daí, André foi direitinho à sua secretária, sacou de uma das gavetas um pequeno pacote de notas de cem mil réis, meteu-o no bolso e saiu.
Quando tornou ao lado de Teobaldo, disse-lhe:
- Sabes? Está tudo arranjado.
- Hein? Como? Ela parte?
- Sim. Levei-lhe em teu nome oitocentos mil réis. Seguirá no primeiro paquete para Buenos-Aires e não tornará cedo ao Brasil.
- Ó desgraçado! Querem ver que lhe deste as tuas economias!
- Não; apenas o que fiz foi adiantar-te o dinheiro; depois de casado me pagarás.
- Nesse caso vou passar-te uma letra.
- Para que? Não precisa.
XXI
E no entanto, à noite desse mesmo dia, travava-se entre o Coruja, D. Margarida e a filha desta o seguinte torneio de palavras:
- Então, seu Miranda; o senhor decide ou não decide o diabo deste casamento?
- Agora, agora Sra. D. Margarida, é que as coisas vão endireitando e, se Deus não mandar o contrário, pode bem ser que tudo se realize até mais cedo do que esperamos.
- Ora! já não é de hoje que o senhor diz isso mesmo!
E note-se que, depois que Teobaldo melhorara de circunstâncias, D. Margarida havia abrandado muito a 8spereza de suas palavras para com o futuro genro; isto quer dizer que ultimamente podia André, como no princípio de seu namoro, levar alguns presentes à noiva e mais à velha. Mas, nem por isso, deixava esta de falar às vizinhas, desde pela manhã até à noite, a respeito do célebre casamento da filha, que, segundo a sua expressão, parecia encantado.
- Pois se tu também não te mexes! gritava ela às vezes, ralhando com a rapariga. A ti tanto se te dá que as coisas corram bem como que não corram. Nunca vi tamanho descanso, credo! Ninguém dirá que és a mais interessada no negócio!
- Ora, mamãe, mais vale a nossa saúde!... respondia Inez, invariavelmente. O que tem de ser traz força!
- Oh! que raiva me metes tu quando dizes isso, criatura!
- Mas se é...
- Qual é o que! Cada um que não trate de si para ver como elas lhe saem! Não me tiram da cabeça que, se apertasses um pouco o rapaz, ele talvez até já tivesse aviado por uma vez com isto! Já com a tal história do ensino foi a mesma coisa; tu, tanto remancheaste, tanto te descuidaste, que afinal lá se foi tudo por água abaixo!
- Ora, eu ensino em casa da mesma forma..
- A quatro pintos pelados, que levam aí todo o santo dia a me atenazarem os ouvidos com o "b-a faz bá, b-e faz bé!" Ora; Deus me livre!
- Rendem quase tanto como uma cadeira...
- Mas não são certos. De um momento para o outro podes ficar sem nenhum... Ao passo que a cadeira...
- Mais vale a quem Deus ajuda...
- Sim, mas Cristo disse: "Faze por ti que eu te ajudarei". E é justamente do que não te importas - é de fazer por ti!
Estas conversas acabavam quase sempre arreliando a velha, que por fim lançava à conta do Coruja toda a responsabilidade do seu azedume. Porém o que mais a mortificava era o falatório da vizinhança, era o comentário dos conhecidos da casa, que principiavam já a zombar abertamente do "tal casório".
quarta-feira, 2 de setembro de 2009
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