segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Leitura 15

A cortesã, já então um pouco ofuscada pela concorrência estrangeira, resignava aquele meio amor, esperando, cheia de fé, que o seu amado haveria, mais cedo ou mais tarde, de recorrer aos braços dela como supremo recurso quando lhe chegasse a ele a saciedade ou quando se lhe esgotassem recursos para a peraltice.

Aquela vidinha não podia durar muito e, uma vez comido o último vintém, não seria com as francesas que ele se havia de achar!

Com efeito, ainda não estava em meio o segundo ano da nova opulência de Teobaldo e já este começava de retrair-se da pândega, não para tornar fielmente a Leonília, mas torcendo para o lado de Branca, de cujo namoro se descuidara um pouco nos últimos tempos.

E ao sentir murcharem-lhe de todo as algibeiras, veio-lhe uma ardente febre de liquidar quanto antes aquele casamento, que passava a ser de novo para ele o extremo porto de salvação. Aguiar, porém, que não desistia uma polegada de suas pretensões sobre a prima, deu logo por isso, pôs-se de sobreaviso, estudou-os a ambos e afinal, sem mais se poder conter, interrogou abertamente a menina, de uma vez em que a pilhou de jeito.

Branca respondeu que não reconhecia nele direito algum que o autorizasse a fazer semelhante interrogatório e, depois de muito instigada pelo primo, confessou que votava ao Sr. Teobaldo particular afeição e que estaria disposta a casar-se com ele, no caso que ele a desejasse.

- Com que a senhora o aceitaria para marido?

- A ter de escolher.

- Escolhia-o...

- É exato.

- Quer dizer que o ama!...

- Não sei o que é o amor; apenas reconheço no seu amigo todas as qualidades que eu sonhava no meu noivo; assim pensasse ele a meu respeito.

- Ah! descanse que não! Aquilo não é homem para sentimentos dessa ordem! É um libertino!

- Meu primo!

- A senhora já o defende... . Bravo!

- Decerto, porque o senhor o está caluniando!

- E minha prima o conhece porventura? Saberá ao menos quais são os precedentes da vida dele?

- Não, mas calculo.

- Pois erra no cálculo! Fique sabendo que Teobaldo não a merece; é, repito, um homem incapaz de qualquer afeição séria e duradoura; é um homem que se gastou, que se estragou em amores de todo o gênero e...

- Se continua falar desse modo, vou para junto de meu pai...

- Ah! não quer ouvir as verdades a respeito dele; está bom, está muito bom!... Não sabia que a coisa chegara a este ponto; mas, enfim, sempre lhe direi que o seu rico Teobaldo até hoje tem vivido, por bem dizer, a' custa de mulheres!...

Branca ergueu-se indignada e fugiu.

- Miserável! considerou o Aguiar; é preciso ser muito infame para fazer o que ele fez! Apresento-o a esta casa, confio-lhe as minhas intenções, declaro-lhe quanto adoro minha prima, e o patife responde a tudo isso procurando disputar-ma. Ah! mas a coisa não lhe há de ser assim tão doce! Eu cá estou para te cortar os planos, especulador! Queres apanhar-lhe o dote? Pois tens de te haver comigo! Não te lamberás com o dinheiro de meu tio como te lambeste com o dinheiro da pobre Ernestina!

Daí a dias falava o Aguiar com o comendador:

- É preciso abrir os olhos, meu tio, é preciso abrir os olhos. Aquele tratante é capaz de tudo! Abra os olhos, se não quiser que ele lhe pregue alguma peça...

- Mas, com a breca! não foste tu mesmo que mo apresentaste?

- Não o conhecia nesse tempo: andava iludido; só hoje sei a bisca que ali está.

E contou a respeito de Teobaldo todas as verdades que sabia e mais ainda o que lhe pareceu necessário para as realçar; assim, disse que ele era um grande devasso e um grande hipócrita; que ele para conseguir qualquer desiderato não hesitava defronte de obstáculos, nem considerações de espécie alguma, e que, no caso presente, se o comendador não tratasse de defender a filha, o patife conseguiria apoderar-se dela, pois já lhe havia captado a confiança e talvez o coração.

- Estás sonhando com certeza!

- Não! digo a verdade. Branca deseja casar com ele!

- Não creio! Isso não pode ter fundamento!

- Juro-lhe que tem! Ela própria mo confessou!

- Nesse caso vou interrogá-la.

- Pois interrogue, e verá!

Branca respondeu ao pai com toda a franqueza que - Se tivesse de escolher noivo preferia o Sr. Teobaldo a qualquer outro...

- Bem, filha, isso é lá uma questão de gosto; não se argumenta! mas, sempre te direi que é de minha obrigação evitar que dês um passo mau; preciso esclarecer-te sobre os precedentes e sobre o caráter desse moço, a quem na tua inocência escolheste para marido.

- Oh! mas foi vossemecê justamente quem me deu o exemplo de gostar dele!. .. Não posso compreender como um rapaz, até aqui tão querido e simpatizado por todos nesta casa, mereça o que meu pai acaba de dizer

- Sim, minha filha, mas o casamento é coisa muito séria; pode a gente simpatizar com uma pessoa, achar que ela tem talento, que é bonita, que é engraçada; sim, senhor! Daí, porém, a querer mete-la na família vai uma distância enorme!...

- Não sei que possa faltar Aquele rapaz para ter direito à minha mão!...

- Não se trata do que falta, meu bem, mas do que lhe sobra!...

- Como assim?

- É que há feios boatos a respeito da vida que ele tem levado aqui na corte..

- Intrigas de meu primo...

- Eu, pelo menos, preciso tomar certas informações antes de consentir que penses nele.

- Ora, papai, isso de pensar ou de não pensar em alguém não depende da vontade; e, quase sempre, quanto mais a gente faz em não pensar em uma pessoa ou em uma coisa, é quando mais ela não lhe sai da idéia.

- Bem, bem, bem! disse o velho afastando-se contrariado; mais tarde havemos de falar neste assunto; por ora não tens a cabeça no seu lugar.

Toda esta conversa foi a noite desse mesmo dia relatada minuciosamente a Teobaldo por Branca, que se encontrou com ele em casa de uma família conhecida de ambos.

- Estás disposta a casar comigo? perguntou-lhe o rapaz.

- Bem sabes que sim.

- Mesmo sem a autorização de teu pai?

- Sim, mas exijo que lhe faças o pedido.

- E se ele negar!

- Insistiremos.

- E se ele insistir também na recusa?

- Esperaremos.

- E se ele nunca mudar de idéia?

- Não sei... Havemos de ver...

- E se ele quiser casar-te à força com teu primo?

- Oh! isso não consinto.

- Pois fica sabendo que é essa a sua intenção!

- Não creio!

- E, se for, estás disposta a reagir?

- Estou.

- E sabes qual é o único meio que há para isso?

- Qual é?

- Fugindo.

Branca teve um sobressalto e repetiu quase que mentalmente:

- Fugindo?...

- Sim, e desde já preciso saber se devo ou não contar contigo; nestes casos não há meias medidas a tomar: se estás disposta a ser minha esposa, arrostaremos tudo; se não estás, desaparecerei para sempre de teus olhos. Decide!

- Sim, mas tu hás de falar primeiro a papai...

- Está claro e só me servirei do rapto no caso que este me recuse a tua mão.

- Talvez não recuse.

- E se recusar?

Ela abaixou os olhos.

- Responde! disse ele.

- Irei para onde me levares...

- Bem. Estamos entendidos.

E Teobaldo afastou-se disfarçadamente.

Quando tornou a casa, foi direito ao Coruja, a quem por último confiava as suas esperanças de casamento, e disse-lhe sem mais preâmbulos:

- Sabes?! O Aguiar está me fazendo uma guerra terrível! intrigou-me com o comendador! Creio que vou ter muito vento contrário pela proa! Ah! mas comigo aquele miserável perde o seu tempo porque estou resolvido a raptar a menina!

- Não sei se farás bem com isso... observou o outro; esses meios violentos provam quase sempre muito mal... Eu, no teu caso, me entenderia com o pai.

- Ah! está bem visto que lhe farei o pedido! faço, que dúvida! mas já sei que vou levar um formidável "não" pelas ventas! O bruto nega-ma com certeza!.

- Quem sabe lá, homem! Experimenta...

- Pois se o demônio do Aguiar não faz senão desmoralizar-me aos olhos do velho !.

- Pois desmente-o, provando com a tua conduta o contrário do que ele disser. Olha! Queres ver o meio de chegar mais depressa a esse resultado? Procura trabalho. Emprega-te!

- Mas onde?

- Em casa do próprio pai da menina...

- Em casa do comendador? Tem graça.

- Não sei porque...

- Pois eu sirvo lá para o comércio!...

- Procura servir.

- Ele não tomaria a sério o meu pedido.

- Nesse caso a culpa já não seria tua; e o bom cumprimento do teu dever, procurando trabalho, seria já argumento que ficava de pé contra as intrigas do Aguiar.

- Tens razão. Amanhã mesmo vou falar ao velho; talvez consiga alguma coisa...

- Hás de conseguir, pelo menos, provar que desejas ganhar a vida.

Teobaldo ficou pasmado quando, no dia seguinte, às suas primeiras palavras com o pai de Branca, este disse sem o menor constrangimento:

- Ó meu caro senhor, por que não me falou há mais tempo?... Tenho muito prazer em ser-lhe útil; diga quais são as suas habilitações e pode ser que entremos em algum acordo.

Teobaldo viu-se deveras embaraçado para responder a semelhante pergunta. Ele, coitado, não tinha habilitações; tinha dotes, sentia-se com jeito para tudo em geral, mas imperfeito e inepto para qualquer especialidade.

O comendador foi em auxílio dele, perguntando-lhe se sabia o francês e o inglês.

- Perfeitamente, apressou-se a responder o interrogado. - Falo e escrevo com muita facilidade qualquer dessas línguas.

- Pois então trabalhará na correspondência. Tem boa letra?

- Sofrível; quer ver?

E, tomando a pena que o negociante havia deposto em cima da carteira, escreveu primorosamente sobre uma folha de papel as seguintes palavras:

"Convencido de que a ociosidade é a mãe de todos os vícios e de todos os males, desejo evitá-lo, dedicando-me a um trabalho honesto e proveitoso."

- Muito bem! disse o comendador, olhando por cima dos óculos para o que estava escrito. Pode amanhã mesmo apresentar-se aqui; meu guarda-livros se entenderá com o senhor.

- Devo vir a que horas?

- Aí pelas sete da manhã.

domingo, 30 de agosto de 2009

Leitura 14

Então levantou-se uma grande chama que a envolveu toda. Ela soltou um grito e procurou ganhar a porta da sala; a chama recresceu com o deslocamento do ar.

A desgraçada conseguiu todavia chegar até onde estava André. O Coruja ergueu-se de pulo e viu, sem compreender logo, aquela enorme labareda irrequieta, que lhe percorria o quarto, a berrar desesperadamente.

Correu a socorrê-la; mas Ernestina acabava nesse momento de cair por terra, agonizante. Embalde ele procurava com os próprios punhos apagar-lhe as chamas do vestido.

Da sala até ali, por onde ela atravessava de carreira, viam-se na parede, de espaço em espaço, a forma de sua mão, desenhada com gordura derretida e pequenos pedaços de carne.

Três vizinhos haviam acudido do andar de baixo e procuraram esclarecer o fato; a carta, encontrada sobre a cômoda, tudo explicou. Em breve a casa encheu-se de gente do povo e empregados da Polícia.

Puxou-se o sofá para o meio da sala e nele se depois o corpo de Ernestina; não foi possível despi-lo totalmente dos farrapos que o cobriam, porque estes se tinham grudado às enormes feridas abertas pelo fogo. Toda ela, coitadinha, apresentava urna triste figura negra e esfolada em muitos pontos. Estava horrível; o cabelo desaparecera-lhe; os olhos eram duas orlas vermelhas e ensangüentadas; a boca, totalmente deslabiada, mostrava os dentes cerrados com desespero; e dos ouvidos sem orelhas e do nariz sem ventas escorria-lhe um líquido gorduroso e amarelento.

Um dos vizinhos, que era médico, passou logo o atestado de óbito e o Coruja tratou de dar as providencias para o enterro.

Teobaldo, ao entrar da rua às três da tarde, parou, sem ânimo de penetrar na sala, e, muito lívido, perguntou ao companheiro:

- Que é isto? Ela morreu?.

- Matou-se.

E André, carregando com ele para o seu quarto, narrou-lhe minuciosamente o ocorrido e disse-lhe depois:

- E o seu herdeiro és tu.

- Eu?!

- É exato. Deixou-te o que possuía. coitada!

E limpou as lágrimas.

- Diabo! exclamou Teobaldo, soltando um murro na cabeça. Diabo! Maldito seja eu!

O outro não queria consentir que ele visse o cadáver, mas Teobaldo repeliu-o e correu para junto de Ernestina. Atirou-se de joelhos ao lado dela e abriu a soluçar como um perdido.

- Desgraçado que eu sou! Desgraçado que eu sou!

E ergueu a cabeça para lhe dar um beijo na testa.

- Quem sabe, pensou ele, inundando-a de lágrimas, quem sabe se este mesmo beijo um pouco antes não teria te poupado à morte!... Criminoso que sou! Enquanto morrias aqui, abandonada e repelida por mim, que te não merecia; enquanto me lançavas com o teu último suspiro a tua benção e o teu perdão, eu te amaldiçoava e maldizia o teu afeto, sem ao menos compreende-lo!

Coruja veio arrancá-lo dali à força, e tão acabrunhado o achou depois do enterro que, para o consolar, lhe disse:

- Então, então, meu Teobaldo! O que está feito já não tem remédio! Nada lucras com ficar neste estado! Vamos! No fim de contas não tens culpa do que sucedeu!...

- Não é verdade, meu André? volveu o outro, apoderando-se das mãos do Coruja. Não é verdade que não sou um assassino perverso?... Não é verdade que, se a matei...

- Oh! tu não a mataste!.

- Sim, matei-a! Sei perfeitamente que fui a causa de sua morte; mas eu também não podia adivinhar que a minha indiferença a levasse a tal extremo!

- Decerto, decerto!

- Ah! sou um desgraçado! sou um ente maldito! Todos me cercam de carinhos e bondades, eu só os retribuo com o mal e com a ingratidão. Reconheço que sou amado demais! Reconheço que nada mereço de ninguém porque nada produzo em benefício de quem quer que seja! Deviam dar cabo de mim como se faz com os animais daninhos!

Enlouqueceste, Teobaldo! Estás a dizer tolices!

- Não! replicou este, não! E em ti mesmo vejo a confirmação do que estou dizendo. És trabalhador, és perseverante, és digno de toda a felicidade, e, só por minha causa, não consegues ser feliz!

- Ao teu lado não posso ser infeliz, meu amigo.

- Ao meu lado és sempre tão desgraçado como eu! Ainda não conseguiste o teu casamento, ainda não conseguiste fazer o teu pecúlio, e tudo por que?..

Porque eu aqui estou! Já hoje não foste à tua obrigação; ontem gastaste o dia inteiro a cuidar desta pobre mulher que eu matei...

Coruja percebeu que eram inúteis as suas palavras de consolação, porque o desespero de Teobaldo estava ainda no período agudo, e, para distraí-lo, resolveu procurar casa no dia seguinte e tratar logo da mudança.

Aqueles fatos serviram para redobrar a irregularidade da vida de Teobaldo, porque vieram modificar as teorias deste sobre o amor da mulher e aqueceram-lhe durante algum tempo as algibeiras.

Foi por seu próprio pé à procura de Leonília que, não conseguindo realizar a premeditada viagem, havia tornado à existência primitiva e achava-se luxuosamente instalada como dantes. Contou-lhe todo o ocorrido e acabou pedindo-lhe perdão de se ter mostrado até aí tão indiferente grosseiro também com ela.

A cortesã estranhou a visita, mas não menos a estimou por isso, abençoando instintivamente do fundo da alma a morte da outra, que lhe restituía o amante.

Foi assim que Teobaldo voltou aos braços dela, entregando-se como por castigo, como para cumprir uma penitência, em honra à memória de Ernestina.

Todavia não se esqueceu de Branca; era esta a idéia verdadeiramente boa e consoladora de sua vida; era sua doce estrela de esperanças, o grande lago azul onde o seu pensamento ia descansar, quando votava desiludido dos prazeres ruidosos e prostrado pelo tédio da ociosidade.

Agora assistia à casa do comendador com mais freqüência e, uma vez em que se achou a sós com Branca, tomou-lhe as mãos e disse-lhe:

- Ah! Se eu pudesse lhe falar com franqueza...

- Mas...

- Sei que não tenho esse direito: a senhora nunca me autorizou a tal; muito me custa, porém, esconder por mais tempo o meu segredo... Oh! É um desgosto tão grande... tão profundo.

- Um desg0sto? creia que me penaliza essa notícia...

- Obrigado, no entanto...

- Mas, qual é o desgosto?

- Consente que lho confesse?

- Sim.

- Promete não ficar zangada comigo?

- Diga o que é.

- É o seu casamento.

- Com meu primo? Ora, isso ainda não está decidido.

- Mas estará em breve..

- Crê?

- É a vontade do comendador... e a senhora como filha dócil e obediente.

- Meu pai não seria capaz de casar-me contra a minha vontade...

- E é contra a sua vontade este casamento?

- O senhor já sabe que sim; mas não vejo onde esteja a causa do seu desgosto.

- É porque sou amigo de seu primo.. E desejava vê-lo casado comigo?...

- Ao contrário, e por isso que me desgosto.

- E por que não deseja vê-lo casado comigo?

- Porque...

- Diga.

- Porque a amo.

Branca estremeceu toda e quis fugir.

- Ouça-me, acrescentou Teobaldo, segurando-a pelos braços. Ouça e perdoe, minha doce esperança, minha vida! A senhora foi o meu bom anjo, foi a salvadora de minha alma; eu já me sentia perdido, gasto, morto; desde que a vi, reanimei-me como por encanto! Adoro-a, Branca, e basta uma palavra sua, uma única, para que eu seja o mais feliz ou o mais desgraçado dos homens!.

- Cale-te, Teobaldo!

- Não! Quero que me responda!...

- Mas que lhe hei de eu dizer?.

- Diga-me se devo ou não ter esperanças de ser amado pela senhora.

Ela quis escapar-lhe de novo; ele não deixou.

- Vamos! Fale.

- Sim... disse Branca afinal, corando muito e fugindo.

XIX

A vida de André ficou muito mais desafrontada depois da morte de Ernestina, graças ao magro legado que a infeliz deixara ao outro.

O bom rapaz principiou logo a por de parte algum dinheiro do que ganhava, para ver se podia afinal realizar o seu casamento; pois, a despeito das insistências do amigo, não houve meio de lhe fazer aceitar das mãos deste um só vintém.

- Não, não! dizia. Isso, nas condições em que te achas, mal chega para te equilibrares de novo! nada, meu amigo, é preciso que endireites a tua vida; que a ponhas em ordem e possas manter por algum tempo certa independência. Paga aos teus credores e não te preocupes comigo; deixa-me cá, deixa-me cá com os meus rapazes e trata de aplicar agora o que possuis melhor do que fizeste da outra vez! Isso é que é! Lembra-te das privações e dissabores por que passaste!...

Mas qual! Teobaldo, mal empolgou a herança, tornou à mesma ou pior vidinha que levara antes de empobrecer; não era homem para ficar quieto com dinheiro no bolso. Enquanto tivesse o que gastar, não pensaria noutra coisa; e dir-se-ia até que as suas provações dos últimos tempos, em vez de o corrigirem, serviram apenas de lhe estimular a febre da prodigalidade.

Quem o visse um ano depois não acreditaria que ali estava o desesperado herdeiro de Ernestina; que ali estava aquele mísero rapaz a quem, por castigo, o remorso e o arrependimento arrastaram de novo aos braços de Leonília. E, a julgar pelas aparências, tão proveitoso lhe fora o tal castigo, que Teobaldo acabara de esquecer totalmente a culpa.

Todo ele agora respirava júbilo, elegância e prosperidade; seus esplendidos vinte e sete anos luziam por toda a parte. Também a época não podia ser melhor para isso: o Rio de Janeiro passava por uma transformação violenta, estava em guerra; e, enquanto as províncias se despiam para cobrir com os seus filhos, os sertões paraguaios, o Alcazar erguia-se na rua da Vala e a opereta francesa invadia-nos de cabeleira postiça e perna nua.

Durante o dia ouvia-se o Hino Nacional acompanhando para bordo dos vasos de guerra os voluntários da pátria; à noite ouvia-se Offenbach.

E o nosso entusiasmo era um só para ambas as músicas.

A guerra tornava-nos conhecidos na Europa e uma nuvem de mulheres de todas as nacionalidades precipitava-se s0bre o Brasil, que nem uma praga de gafanhotos sobre um cafezal; as estradas de ferro desenvolviam-se facilitando ao fazendeiro as suas visitas à corte e o dinheiro ganhado Pois escravos desfazia-se em camélias e champanha; abriam-se hotéis onde não podiam entrar famílias; multiplicavam-se os botequins e as casas de penhores. Redobrou a loteria e a roleta, correram-se os primeiros cavalos no prado; surgiram impostos e mais impostos, e o ouro do Brasil transformou-se em papel-moeda e em fumaça de pólvora.

Teobaldo estava, pois, com o seu tempo; já demandando todas as noites o Alcazar dentro do seu cabriolé, que ele mesmo governava com muita graça; já percorrendo a cavalo as ruas da cidade em marcha inglesa; já servindo de juiz de raia no Jóquei Clube ou madrugando nas ceias do Raveaux ao lado das Vênus alcazarinas,

Entretanto, posto esquecesse a culpa, não se descuidava totalmente da sua penitencia a respeito de Leonília e tinha para ela uma espécie de estima obrigatória, como a de alguns maridos pela competente esposa.

sábado, 29 de agosto de 2009

Leitura 13

- Eu também não...

- Até aqui o apreciava somente pelas suas qualidades morais.

Branca não respondeu, porque neste momento uma senhora principiava a cantar ao piano.

Daí a pouco, a um canto da janela, perguntava Afonso ao amigo:

- Então, que tal achaste minha prima?

- Encantadora.

- Não é?!

- Adorável! Uma flor!

- Falou-te nos versos que lhe dei?

- É verdade, e eu tive de elogiá-los, para fazer não desconfiar que eram meus. Imagina em que estado não ficaria minha modéstia; qualifiquei-os de admiráveis!

- E, com efeito, são muito bons.

- Qual! Escrevi-os de afogadilho! Ah! mas se eu já a conhecesse, juro-te que sairiam inspirados!

- Pois reserva a inspiração para outra vez.

Não continuaram a conversa, porque Mme. de Nangis veio ter com Afonso e arrebatou-o, dizendo ao outro:

- Tenha paciência, roubo seu amigo por um instante!

Teobaldo ia também deixar a janela, quando a cortina desta se agitou e apareceu Branca.

- Ah! fez ele, V. Exa. estava aí?

- Sim, o que foi muito bom, porque posso lhe agradecer os versos que o senhor me fez.

- Pois ouviu?

- Ouvi, mas foi sem querer... Que mal ha nisso...

- Seu primo é que não ficará satisfeito.

- Se souber, mas que necessidade tem ele de saber?..

- Quer que eu não lhe diga nada?

- Decerto, e nem só isso, corno desejo que meu primo não fique na primeira poesia e me ofereça muitas outras. Vou daqui direitinha dizer isso mesmo a ele próprio.

E, como para agradecer antecipadamente os versos de Teobaldo, estendeu-lhe a mão, que o moço apertou entre as suas, um tanto comovido.

Horas depois, os dois rapazes, já instalados nos seus sobretudos, metiam-se no carro e abandonavam a festa do comendador.

Pela viagem Teobaldo, a despeito do bom humor do companheiro, quase que não deu palavra; e, ao se pararem-se, Afonso notou que o achava triste.

- Não é nada, respondeu o outro. - Adeus. Até mais ver!

E deixou-se cair para o fundo do cupê, respirando com alívio e murmurando entredentes:

- Adorável criança!

XVIII

Enquanto Teobaldo dançava, ouvia música e conversava em casa do comendador Rodrigues de Aguiar, o pobre Coruja via-se em papos de aranha com os nervos da Ernestina, cuja crise não fora tão passageira como afiançara aquele.

De mais a mais, o Caetano havia saído logo em seguida ao amo e nessa noite recolhera-se mais tarde que de costume; teve André por conseguinte de servir de enfermeiro à rapariga, sem licença de abandoná-la um só instante, porque as convulsões histéricas e os espasmos se repetiam nela quase que sem intermitência.

Foi uma noite de verdadeira luta para ambos; o rapaz, apesar da riqueza dos seus músculos, nem sempre lhe podia conter os ímpetos nervosos. A infeliz escabujava como um possesso; atirava-se fora da cama, rilhando os dentes, trincando os beiços e a língua, esfrangalhando as roupas, em um estrebuchamento que lançava por terra todos os objetos ao seu alcance. No fim de algumas horas o Corja sentia o corpo mais moído do que se o tivessem maçado com uma boa carga de pau.

Além de que, a sua nenhuma convivência com mulheres e o seu natural acanhamento, mais penosa e critica tornavam para ele aquela situação. Ernestina cingia-se-lhe ao corpo, peito a peito, enterrando-lhe as unhas na cerviz, mordendo-lhe os cabelos, refolgando-lhe com ânsia sobre o rosto, como em um supremo desespero de amor. E André, tonto e ofegante, sentia vertigens quando seus olhos topavam as trêmulas e agitadas carnes da histérica, completamente desvestidas nas alucinações do espasmo.

Às quatro horas da madrugada, quando Teobaldo chegou do baile, ele ainda estava de pé e a enferma parecia ter afinal sossegado e adormecido.

- Que! exclamou aquele. Pois ainda trabalhas?

- Schit! Qual trabalho... respondeu Coruja, pedindo silencio com um gesto. Passei a noite às voltas com a Ernestina... Ah! não imaginas... ataques sobre ataques!... Pobre rapariga! Não faças bulha... Creio que ela agora está dormindo...

- Impressionou-se naturalmente com o que eu lhe disse à tarde... Ora! não fosse importuna!

- Coitada!

- Bem, disse Teobaldo, mas recolhe-te ao quarto e trata de descansar; eu fico aqui. Vai.

- Mas não te deitas?

- Tenho ali aquele sofá; não te incomodes comigo. Vai para a cama, que deves estar caindo de cansaço. Adeus.

O Coruja notou que o amigo trazia qualquer preocupação.

- Sentes alguma coisa? perguntou-lhe.

- Ao contrário: há muito tempo não me acho tão bem disposto.

- Então boa noite.

- Até amanhã.

Coruja recolheu-se ao quarto e o outro pôs-se a passear na sala, enquanto se despia; depois chegou à porta da alcova, encarou com um gesto de tédio o to prostrado de Ernestina e voltou logo o rosto, como se tivesse medo de acordá-la com o seu olhar.

Todo ele era só uma idéia: - a filha do comendador. Branca não lhe saía da imaginação; tinha ainda defronte dos olhos aquele sorriso que ela lhe deu à janela; sentia ainda entre as suas a sua tremula mãozinha e nos ouvidos a música das últimas palavras que lhe ouviu.

- Adorável! adorável! repetia ele.

E foi para a mesa em mangas de camisa e começou a escrever versos sentimentais.

Ouviam-se, no silencio fresco da madrugada, o bater inalterável do relógio e os bufidos suspirados de Ernestina, que parecia dormir um sono de ébrio.

- Que mulher impertinente !... considerou ele, atirando com a pena e deixando pender para trás a cabeça a fitar o teto.

E pensou:

- Quando eu me lembro que a esta criatura nada falta - casa, rendimentos, criados, e que ela se vem meter aqui, possuída de esperanças injustificáveis... nem sei que juízo forme a seu respeito!... Será isto o verdadeiro amor?.. . Talvez, mas, se assim é, arrenego dele, porque não conheço coisa mais insuportável!... Ainda se ela não fosse tão desengraçada!... tão tola!... Mas, valha-me Deus! nunca vi mulher mais ridícula quando tem ciúmes; ainda não vi ninguém fazer cara tão feia para chorar!... Se ela fosse jeitosa ao menos; mas não tem gosto para nada, não sabe pôr um vestido, não sabe por um chapéu; e, em vez de endireitar com o tempo, parece que vai ficando cada vez mais estúpida! Não! Definitivamente é uma mulher impossível, apesar de toda a sua dedicação!

E, para se divertir, pôs-se a lembrar as asneiras dela. Ernestina não dizia nunca "eu fui", era "eu foi"; pronunciava pãos, razães, tostãos e gostava muito de preceder com um a certos verbos, como divertir, divulgar, reunir, retirar e outros; como também não pronunciava as letras soltas no meio da palavra. "Obstáculo" em sua boca era ostáculo, "obsta" era osta e assim por diante. E a respeito dos tempos do verbo? Se ela queria dizer "entremos", dizia entramos e vice-versa; perguntava - "tu fostes? - tu fizestes?" Uma calamidade!

Além disso, ultimamente dera para engordar, por tal forma que parecia ainda mais baixa e mais desairosa.

Não era feiazinha de rosto, isso não; mas em toda a sua fisionomia, como no resto, não se encontrava um só traço original, distinto, impressionável. Vestia-se, calçava-se e penteava-se como toda a gente, e só conversava a respeito de vulgaridades, sem ter nunca uma frase própria; rindo quando repetia uma pilhéria já muito estafada, e desconfiando sempre que lhe diziam qualquer coisa que ela não entendesse. Uma lesma!

E Teobaldo a fazer estas considerações; e ela lá dentro a ressonar, agitada de vez em quando pelo sonho; ora gemendo, ora articulando palavras incompletas e destacadas.

- O bonito será se ela adoece deveras aqui em casa!... considerou ele. Era só o que faltava!

E, notando que amanhecia, ergueu-se da mesa, lavou-se, mudou de roupa e tomou um cálice de conhaque. Já de chapéu e de bengala, ia a sair, quando Ernestina se remexeu na cama, depois assentou-se e perguntou com a voz muito quebrada e fraca:

- És tu, Teobaldo?

- Que deseja? interrogou ele secamente.

- Não te recolhes?

- Não, porque me tomaram a cama.

- Não sejas mau.

- Ora!

- Para que me tratas desse modo?... Estou tão incomodada, tão doente... Se soubesses como tenho sofrido!...

- Sofre por teima! A senhora podia perfeitamente estar em sua casa, feliz e tranqüila.

- É exato; a culpa é minha. Que horas são?

- Amanhece.

- Que? Pois já se passou a noite inteira? Ah! agora me recordo que estive sem sentidos.

- Adeus.

- Vais sair?

- Vou.

- Por que não te demoras um pouco? Faze-me um bocado de companhia...

- Não, filha, preciso sair. Adeus.

- Escuta: foste sempre ao baile?

- Fui.

- Divertiste-te muito?

- Sim.

- Namoraste?

- Adeus.

- Vem cá.

Ele se aproximou dela com má vontade.

- Acho-te tão aborrecido, meu amor; não me trates com essa indiferença.

- Se lhe parece!

- Que?

- Que não devo estar aborrecido.

- Por minha causa?

- Naturalmente.

- Pois então vai-te embora, vai! Nunca mais te aborrecerei!

Teobaldo apertou-lhe a mão. Ela pediu-lhe um beijo, ele negou-lho e saiu cantarolando um trecho de ópera.

Logo que se perdeu no corredor a voz do moço, Ernestina ergueu-se e foi, amparando-se aos móveis e à parede, até à mesa, onde estavam, ao lado do candeeiro de petróleo ainda aceso, os versos há pouco escritos por Teobaldo. Leu-os, chorou e, assentando-se no lugar em que ele estivera, tornou da pena e lançou em uma folha de papel o seguinte, pouco mais ou menos:

Declaro que sou a única autora de minha morte e declaro também que reconheço por meu legitimo herdeiro o Sr.. Teobaldo Henrique de Albuquerque, morador nesta casa. O meu testamento, no qual lego-lhe todos os meus bens, acha-se nas notas de tabelião Ramos.

Datou, assinou, pôs a folha de papel sobre a cômoda e, tornando à mesa, agarrou o candeeiro, desatarrachou-lhe a griseta, lançou esta para o lado sem lhe apagar a torcida e, julgando-se cheia de resolução, levou aos lábios o reservatório de querosene.

Mal, porém, encheu a boca com o primeiro trago fugiu-lhe a coragem de suicidar-se e, já arrependida de tal propósito, arremessou de uma golfada sobre a mesa o venenoso líquido, que foi ter à torcida e logo se inflamou.

Ernestina, assustada com isto, arremessou nervosamente o candeeiro que tinha ainda nas mãos, e o petróleo derramou-se, inundando-a.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Leitura 12

Aguiar pertencia ao comércio tanto por gosto como pelas circunstâncias em que nascera; destinado para isso desde o berço por seu pai, um rico negociante português, dera os primeiros passos entre o Razão e o Caixa e criara os primeiros cabelos da barba em Londres, para onde o enviara aquele a praticar em velhas casas comerciais.

Não chegara a conhecer a mãe, porque esta morrera pouco depois de o dar à luz; só tornou ao Brasil com a notícia do falecimento de seu pai, cujo lugar no comércio preencheu logo.

Foi então que Teobaldo se relacionou com ele, por acaso, em um baile de máscaras no Pedro II. O filho do barão, que nesse tempo era ainda um bom gastador, fascinou-o de pronto com as suas maneiras fidalgas e muito mais distintas que as dele; dentro em pouco haviam-se feito companheiros inseparáveis de pândega; quase sempre ceavam juntos, gastavam com a mesma largueza, conheciam as mesmas mulheres e, muita vez, jogavam ao lado um do outro nas tavolagens da época.

As desastrosas circunstâncias a que ao depois se viu Teobaldo reduzido, separaram-nos por algum tempo, mas não de todo; e, agora, aquele convite para a casa do comendador Rodrigues e as confidencias que o precederam, como que o ligavam de novo e mais estreitamente.

O comendador era tio do Aguiar por parte de pai; velhote de seis palmos de altura, forte e nervoso, coração bom, mas de gênio irascível e fulminante.

O sobrinho dizia a rir que ele, se lhe chegassem um charuto aceso à ponta do nariz, estourava.

Viera muito pequeno de Portugal em companhia do irmão; fora tropeiro durante uns vinte anos em S. Paulo e Minas; depois estabeleceu-se na Mata, negociou forte e veio afinal, já velho, a levantar a sua tenda no Rio de Janeiro. Da sua paixão pela política apenas lhe restavam as recordações de quarenta e dois, ano em que se batera pela revolução de Minas, saindo ferido de uma pequena escaramuça na ponte de Santa Luzia; contava este fato a toda a gente e sempre com o mesmo entusiasmo.

Era viúvo; tivera três filhas, das quais apenas uma lhe restava, Branca; um mimo de quinze anos, a formosa tirana para quem o Aguiar pedia versos ao amigo e em honra da qual se afestoava agora o velho casarão do comendador.

Teobaldo chegou às cinco horas a Mata-cavalos, ainda muito impressionado pelas contrariedades desse dia.

- Ah! mas desta vez creio ter conseguido endireitar a vida ... . disse ele logo que entrou em conversa com o dono da casa.

E pôs-se a contar o ocorrido a respeito de Leonília e Ernestina.

- Tomara eu as tuas desgraças... respondeu aquele disposto a falar dos próprios amores.

Teobaldo não lhe deu licença para isso e continuou a tratar de si, até à ocasião de irem ambos para a mesa.

Aguiar, que não era dos mais pecos em questões culinárias, caprichou no jantar que ofereceu ao amigo, e, à prova do terceiro vinho, já os dois lamentavam intimamente não dispor de mais segredos para os confiar um ao outro.

Teobaldo pediu novas informações a respeito de Branca.

- Ah! fez o negociante, meneando a cabeça com os olhos fechados; vais ver o que é uma criatura perfeitamente adorável. Bela. inteligente, distinta, espirituosa, tudo o que há de bom, que há de puro e que há de mais sedutor no mundo! Uma obra-prima! Ah! que se ela sentisse por mim a metade do que eu sinto por ela!...

- É não desanimar, filho! Deixa correr o tempo; não acredito que uma menina de quinze anos resista a todo esse amor!

- Não sei, ela é de uma tal frieza para comigo...

- Talvez aparente... Não conheces as mulheres... foi para elas que se inventou o provérbio "Quem desdenha quer comprar".

- Em todo o caso não desanimarei sem ter esgotado até o último recurso.

- Está claro! E teu tio? que tal é?

- Um tipo, mas belo homem... Vais gostar dele. Fala-lhe na revolução mineira...

- Aquela casa pertence-lhe, ou é alugada?

- A casa em que ele mora? Pertence-lhe, e, como essa, mais duas lá mesmo em Botafogo.

- E ele vive só com a filha?

- Não; tem mais uma pessoa em casa: Mme. de Nangis.

- Mme. de Nangis? Quem vem a ser?...

- É uma professora francesa, a quem meu tio encarregou da educação de Branca.

- Ah!... E é velha?

- Meia idade...

- Bonita?

- Não é feia.

- Mora lá há muito tempo?

- Há mais de oito anos.

- E não dizem nada a respeito dela com teu tio?

- Não, porque já disseram tudo o que podiam dizer.

- Com razão?

- Sei cá; é de supor que sim.

- Nunca percebeste nada entre eles?

- Nem pretendo.

- Por conveniência...

- Não.

- Então por que?

- Ora! Que diabo me interessa isso?...

- É boa! Pois não tencionas casar com tua prima?...

- Sim, mas minha prima nada tem que ver com Mme. de Nangis...

Teobaldo sacudiu os ombros em sinal de desaprovação.

- E ela que tal é? Simpática? perguntou depois.

- Quem? A professora? É: toca piano admiravelmente e dizem que tem espírito.

- Dizem?

- Sim; eu ainda não dei por isso.

- É instruída?

- Tanto como qualquer pretensiosa.

- Amável?

- Tanto quanto é instruída.

- Parece que não morres de amor por ela...

- Enganas-te; Mme. de Nangis protege o meu casamento.

- Ah! E só por isso é que a estimas?.

- Por isso e pela grande influencia que ela tem sobre meu tio.

- Então é exato o que disseram a respeito deles...

- Homem, a coisa vem desde os últimos tempos de minha tia...

- E por que o velho não se casa agora com a professora?

- Por uma razão muito simples: Mme. de Nangis é casada...

- Casada? E o marido?

- Está em Paris.

- Ah!...

E a graça é que lhe dá uma pensão.

- À custa do comendador?

- À custa do comendador é um modo de dizer, porque o que é dele é dela...

- Ah! a coisa chegou a esse ponto?

- Ora!

* * *

Às dez da noite apearam-se os dois rapazes à porta do comendador Rodrigues de Aguiar.

Casa antiga, de aparência muito feia, mas com um belo interior. Teobaldo, ao primeiro passo que deu de portas adentro, notou logo em tudo uma certa felicidade de escolha, uma bem educada sobriedade nos objetos de luxo; percebeu que não entrava em uma dessas casas burguesas em que a gente se fatiga só com olhar os móveis e donde se sai com a alma atordoada e cheia de tédio.

Ele, que havia muito não entrava em uma sala dessa ordem, sentiu despertar dentro de si todo o seu passado adormecido, e, como a planta desterrada que ia amortecendo ao ar livre e logo se endireita quando a recolhem à tepidez da estufa, assim ele se fez o que era dantes ao lado da família.

Ali, Teobaldo achou-se perfeitamente bem; estava no seu elemento.

Flor amimada e crescida entre carinhos, era, quando se achava nas ruas, nos cafés ou nas casas de trabalho, uma criatura deslocada e nostálgica. Para o seu completo bem-estar e para o seu bom humor tornava-se indispensável aquele perfume de riqueza, aquele meio aveludado e fino.

O amigo apresentou-o ao tio, e os três conversaram por longo tempo ao fundo de uma saleta, onde se jogava.

É inútil dizer que o filho do Barão do Palmar, insinuante como era, cativou logo as simpatias do velho, principalmente depois que lhe falou de Minas e do papel que seu pai representara na revolução. Aprovou muito o projetado casamento do amigo com Branca e terminou desfazendo-se em elogios ao bom gosto e à distinção que presidiam àquelas salas.

- Não, quanto a isso, respondeu o velho, não aceito os seus cumprimentos, porque não devem ser dirigidos a mim; pertencem de direito a uma senhora que acompanha minha filha há oito anos, Mme. de Nangis... Daqui a pouco lhe serão ambas apresentadas. Se não fosse Mme. de Nangis...

E, como Branca passasse nesse ato pela sala próxima de braço com uma amiga, o comendador interrompeu o que dizia e correu ao encontro dela.

Teobaldo apressou-se a segui-lo.

- É esta, disse o velho.

E, voltando-se para a menina:

- O Sr. Teobaldo Henrique de Albuquerque, filho de antigos conhecidos meus e amigo de teu primo Afonso, que teve a boa idéia de o trazer a esta casa.

Teobaldo vergou-se respeitosamente e declarou que estava encantado em ter feito conhecimento com pessoas tão distintas.

Em seguida o comendador deu-lhe o braço e levou-o até onde estava Mme. de Nangis.

Nova apresentação.

- Agora, disse o velho, está cumprido o meu dever e o senhor que trate de si; faça-se apresentar às amigas de minha filha. Com licença.

- Vai principiar o concerto, observou a professora aceitando o braço que lhe ofereceu Teobaldo - o senhor gosta de música?

- Apaixonadamente, minha senhora.

- Toca algum instrumento?

- Um pouco de piano.

- Quando tiver ocasião dar-nos-á muito prazer em se deixar ouvir.

- V. Exa. confunde-me...

E chegaram à sala próxima, onde duas rabecas, uma violeta e um violoncelo dispunham-se a executar uma serenata de Schubert.

Depois da serenata, Mme. de Nangis anunciou a Teobaldo que ia dançar uma quadrilha e perguntou se ele queria um par.

O rapaz respondeu que ficaria muito lisonjeado se ela própria o aceitasse para seu cavalheiro.

- Com muito gosto, mas fique sabendo que o senhor perde com a troca, replicou a professora.

Dentro de uma hora, Teobaldo era o objeto da curiosidade de todas as damas.

Seu tipo destacava-se naturalmente, sem o menor exagero de galanteria, sem frases pretensiosas, e sempre correto, elegantemente frio e de um distintíssimo comedimento nas palavras e nos gestos.

Branca foi o seu par nos Lanceiros; depois cedeu--lhe também uma valsa, terminada a qual puseram-se ambos a conversar.

- O senhor é que é o autor de uns versos, que saíram há poucos dias no jornal?

- Sim, minha senhora, mas como chegou V. Exa. a lembrar-se de semelhante coisa?

- É que meu primo me havia dito que eram de um amigo dele, creio até que chegou a citar o seu nome e, agora, vendo-os juntos...

- V. Exa. gosta de versos?

- Qual é a moça de minha idade que não gosta de poesia?... Ainda ontem meu pai trouxe-me um livro de Casimiro de Abreu. Conhece?

- Já li. Tem coisas admiráveis.

- Oh! É tão terno, tão apaixonado, que faz chorar. E, mudando de tom:

- Sabe? Meu primo também é poeta...

- Ah! fez Teobaldo.

- Ofereceu-me hoje uma poesia. Quer ver?

Teobaldo bem podia dispensar a leitura, mas não quis prejudicar o outro e disse quando a terminou:

- Magnífico! Não sabia que o Aguiar tem tanto talento!

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Leitura 11

- A senhora então é a mulher dele?... perguntou Leonília, cuja impaciência principiava a denunciar-se.

- Não, não é! apressou-se a afirmar o Coruja, que parecia muito aflito com a situação. Não é mulher dele, não senhora.

- Quando digo - mulher - quero dizer: amante. Sei que ele não é casado...

- Também não é amante... respondeu aquele, a despeito dos olhares que lhe lançava Ernestina.

- É talvez uma criada...

A outra, então não resistiu mais, e veio colocar-se defronte de Leonília, a medi-la de alto a baixo, como se quisesse fulminá-la com os olhos.

A cortesã soltou urna risada.

- Também não é criada?... disse. Então que diabo é... Ah! já sei... talvez alguma parenta da província!

- Não, não respondeu André.

- Será simplesmente uma amiga? perguntou ainda Leonília.

- Previno-a, acudiu a outra, de que não admito debiques para o meu lado!

- Não, filha, eu apenas desejo saber a quem tenho de confiar o que trago para Teobaldo. Encontrei a senhora aqui, com ares de dona de casa, pergunto-lhe muito naturalmente se é mulher dele, ou amante, ou parenta, ou quando menos urna criada, e a senhora fica dessa forma e parece que me quer comer viva! Se alguém deve estar aborrecida sou eu, porque, no fim de contas venho fazer uma visita e, das duas uma: ou a senhora representa a dona da casa e neste caso devia ser mais cortes, ou não representa coisa alguma e por conseguinte devia ser menos intrometida...

- Isso é desaforo!

- Será, mas é um desaforo justo e merecido; quanto à decepção que acabo de sofrer, não é com a senhora que me avenho, pois nem a conheço, mas sim com Teobaldo, que me ofereceu a casa e é o único responsável por esta sensaboria.

Mal acabava Leonília estas palavras, quando se ouviu parar na rua um tílburi, e logo no corredor os passos de Teobaldo.

- E ele aí está, acrescentou ela, dirigindo-se para a porta da sala, o que fez com que o Coruja não tivesse tempo de prevenir o amigo.

- Olá! exclamou este, vendo Leonília. Por aqui! Supunha-te longe, já em viagem para a Europa!

Mas o seu bom humor transformou-se em tédio logo que ele deu com a figura enfurecida de Ernestina que, a um canto do quarto, parecia colada à poltrona por uma tremenda raiva. E, corno em resposta à presença dela:

- Não tive remédio senão vir à casa, porque tenho de ir hoje a uma soirée com o Aguiar.

- Sim, sim, respondeu Leonília; antes, porém de mais nada, dize-me quem é aquela senhora e qual é aqui a sua posição.

Teobaldo, parado em meio da sala, de pernas abertas, começou a coçar a cabeça, sem encontrar uma resposta. Por esse tempo, o Coruja, que não podia ver ninguém na situação em que estava Ernestina, aproximou-se da outra e disse:

- Aquela senhora está aqui por minha causa...

- Você não se enxerga! exclamou a mal agradecida, sem compreender a intenção benévola do moço. - Estar aqui por causa dele! Olha que pretensão! Verdade é que...

- Basta! interrompeu Teobaldo. E, voltando-se para a outra. Ela está aqui por mim.

- É tua amante? perguntou Leonília.

- Não.

- Tua parenta?

- Também não. É uma amiga e veio a meu convite passar aqui alguns dias.

Cavalheiro, como sempre, não quis, dizendo a verdade, cobrir de ridículo uma pobre mulher, cujo crime único era amá-lo até à impertinência; Leonília, porém, que não estudara pelo mesmo código de civilidade, já não pensava desse modo e acrescentou com ironia:

- Ah - Veio a tomar ares.. . Estimo que aproveite isso, mas é bom que lhe recomendes seja um pouco mais cortes com as pessoas que te procuram.

- Deixa-te disso! respondeu Teobaldo.

- Não, insistiu Leonília. - Que tu protejas aquela mulher compreende-se, porque só tens recebido de suas mãos protestos e mais protestos de amor; eu, porém, não estou no mesmo caso, dela só recebi as mais significativas provas de grosseria e de atrevimento.

- Sim, sim, mas acabemos com isto! replicou Teobaldo.

Ernestina ergueu-se e foi ter com ele:

- Exijo que repilas aquele insulto.

- Ora!

- Não repeles?

- Ninguém aqui te insultou, filha!

- És tão bom como ela!

- Mau!

- És um infame!

- Pior!

- És um miserável!

- Cale-se!

- Colocar-me nesta posição ridícula...

- Olhe que me faz perder a paciência!...

- Pensei que estivesse na casa de um cavalheiro e vejo que me sucede justamente o contrário...

- Ah! o meu procedimento é imperdoável, não há dúvida!

- Com certeza! Um homem que se presa não coloca uma mulher nesta posição!...

- Ah! Insiste? Além de impertinente é atrevida? Pois então ouça: A senhora, se se acha nesta posição, é porque assim o quis; eu, há três dias, que emprego todos os meios e modos para a afastar de mim, e a senhora cada vez mais a agarrar-se-me que nem uma ostra! E fique sabendo agora que, se não fossem os meus escrúpulos de homem delicado, há muito que a teria enxotado daqui ou encarregado alguém de despejá-la lá fora!

Ernestina ouviu tudo isto sem um gesto, nem um movimento. Quando Teobaldo acabou estava mais lívida que um defunto e os lábios tremiam-lhe tanto quanto lhe arfava o peito; a outra ainda mais lhe aumentava a agonia lançando-lhe olhares de desprezo.

- Coitada! disse afinal Leonília.

Ernestina deu um arranco na direção do quarto, naturalmente com a intenção de preparar-se para sair, mas em meio do caminho cambaleou e, soltando um grito agudo, desfaleceu nos braços do Coruja, que a acudira de pronto.

- Agora, entram os nervos em cena!... observou Leonília em ar de caçoada.

Coruja conduziu a desfalecida para a cama de Teobaldo, enquanto este, Lufando de impaciência, andava de um lado para outro da sala, muito agitado, as mãos nas algibeiras, o olhar carrancudo.

- Que maçada! resmungava de vez em quando. Que maçada!

- É pô-la na rua! aconselhou Leonília.

- Ora, deixe-me você também! respondeu ele furioso,

- Recebeste a minha carta!

- Recebi.

- Não ficaste zangado?

- Não.

- E é dessa forma que me amas?

- É.

- Pois olha que eu não sou como aquela desgraçada, Babes?

Teobaldo sacudiu os ombros com indiferença.

- Confesso que te havia escrito urna outra carta, mas não quis dar-te o gostinho de recebê-la.

- E eu a encontrei no teu quarto, dentro de um livro.

- Pois leste?...

- Sim, e afianço-te que ela me causou ainda pior efeito que a outra, a cínica.

- Isso quer dizer..

- Que estimei a notícia da tua viagem.

- Obrigado, exclamou Leonília. Não devia esperar outra coisa de ti! És um miserável! Ah! mas descansa que não te perseguirei!

E, rabanando a cauda do vestido, saiu como um raio.

- Passe bem! disse Teobaldo, sem lhe voltar o rosto, e continuou a passear de um para o outro lado da sala, gesticulando enfurecido a cada grito histérico que partia da sua alcova.

- Sabino! gritou ele.

Apareceu o velho Caetano:

- Vossemecê que deseja?

- O Sabino?

- Ainda não voltou.

- Quero o fato de casaca e o sobretudo; mas isso com pressa! Não posso me demorar neste inferno! Que delicioso domingo!

Os gritos de Ernestina repetiam-se.

- E de mais a mais aquela música!... pensava o rapaz a morder os beiços. Ah! mas tudo isto há de endireitar agora por uma vez ou eu não serei quem sou!...

O Coruja surgiu à porta do quarto para dizer muito aflito:

- Teobaldo! ó Teobaldo! Vê esta mulher, que está perigosa, coitada!

- Que a leve o diabo! não fosse idiota!

O outro lançou-lhe um olhar de censura.

- Isso passa.. . disse aquele como para se justificar.

- Um simples ataque de nervos...

E, vestindo a roupa que lhe trouxe Caetano:

- Não tenhas receio, ela voltará a si...

- É que parece que lhe falta o ar...

- Desaperta-lhe o colete...

- Eu?... perguntou o Coruja enrubescendo.

- Isso é o que devias ter feito logo.

E, apressando o laço da sua gravata branca, foi ter com Ernestina, desabotoou-lhe o vestido, desatou-lhe o colete e, depois de a sacudir duas vezes, deixou-a cair de novo sobre a cama.

- Não é ....... disse ele, olha, põe-lhe mais água de Colônia na cabeça e dá-lhe de cheirar daquele frasquinho que está sobre a mesa.

Coruja obedeceu e ele correu à sala para acabar a sua toilette.

Já pronto, o sobretudo no braço, um charuto ao canto da boca.

- Melhorou?

- Está mais tranqüila, creio que vai tornar a si...

- Bem. É preciso que eu saia antes que ela acorde. Despediste-a, como te recomendei?

- Sim, mas inutilmente, não houve meio de a convencer...

- Pois então, em voltando de todo a si, repete-lhe a ordem, e, se ela insistir, mudamo-nos amanhã mesmo..

- Amanhã?...

- Ah! É preciso acabar com isto uma vez por todas!... Quero saber se vim ao mundo só para servir de divertimento a estas senhoras... . Que horas são?

- Devem ser quatro.

- Bom! Ó Caetano!

- Meu senhor.

- Vê se o tílburi ainda está aí embaixo.

E, muito elegante na sua casaca, disse ao Coruja, batendo-lhe no ombro:

- Até logo. Janto com o Aguiar e depois vou a uma soirée, na casa de um tio que ele tem em Botafogo. Adeus, não te descuides da Ernestina.

E saiu.

XVII

O Aguiar morava lá para Mata-cavalos, em casa própria, e tão caprichoso era com esta quanto com a sua própria pessoa.

Aquelas pequenas salas forradas de fresco, mobiliadas com certo esmero, enfeitadas de quadros e cortinas, diziam admiravelmente com o tipo do dono.

Orçava ele então pelos vinte e oito anos e parecia mais bem disposto que nunca. Bonito, mas antipático, tinha uma dessas caras gordas, bem barbeadas, sem rugas nem espinhas, bigode curto e retorcido à força, queixo redondo, olhos pequenos e vivos, nariz grosso, testa muito estreita e magníficos cabelos.

Não era muito gordo, nem tão pouco muito magro; não era alto, mas, igualmente, ninguém podia dizer que era baixo, e vestia-se com inalterável apuro, chegando a fazer disso uma preocupação.

Era um luxo a roupa branca que ele usava durante o trabalho; gostava das calças de brim engomado e trazia sempre boas pedras de valor no peito da camisa e nos dedos.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Leitura 10

E precipitou-se para um dos cantos do quarto.

- Não é nada, volveu o Coruja. Talvez algum vizinho que se recolhe. Pode ficar tranqüilo que aqui não lhe acontecerá mal de espécie alguma. Vamos, assente-se e descanse.

Para melhor o tranqüilizar, foi à porta da entrada e fechou-a por dentro, a chave. Depois, ao voltar de fazer isto, foi que notou deveras a estranha figura do seu protegido.

Este agora, de pé, com a sua grande cabeleira caída sobre os olhos, estava medonho. Era de enorme estatura, magro, mas vigoroso; peito cabeludo e punhos grossos, que pareciam raízes de árvore.

O Coruja sentiu-se pequeno defronte daquele colosso. Foi quase intimidado que se aproximou dele novamente, para lhe repetir que se assentasse.

O homem acompanhava-lhe todos os movimentos sempre com o mesmo desconfiado espanto. André foi ao interior da casa, andou por lá remexendo nos armários e voltou afinal com uma travessa de carne assada e um pão.

Pôs isto sobre uma mesinha, que ele mesmo desocupou para esse fim, foi ainda buscar lá dentro uma garrafa de vinho e disse ao hóspede:

- Coma.

O foragido, sem deixar de lhe acompanhar os menores movimentos, encaminhou-se logo para a mesa e ia lançar-se sofregamente sobre a comida, quando uma explosão de soluços lhe tomou a garganta; e, escondendo a carranca nas suas mãos enormes, ele soluçava com tal ímpeto, que o corpo todo se lhe sacudia nos arrancos do choro.

Coruja não deu palavra, deixou o homem chorar à vontade e pôs-se a fingir que lia um livro junto à secretária; depois foi fazer café.

Passada a crise das lágrimas, o desgraçado principiou a comer, a comer muito, como quem traz uma velha fome de muitos dias. Deixou os pratos limpos e a garrafa enxuta.

- Sente-se agora melhor? perguntou o rapaz.

O outro tomou-lhe a mão e beijou-lha, enquanto dois grossos lhe corriam dos olhos pela aspereza das barbas.

- Está pronto o café, disse Coruja indo buscar a máquina e enchendo duas xícaras.

- Nisto eu lhe faço companhia.

E, depois de lhe passar uma delas:

- O senhor talvez esteja habituado a fumar...

O hóspede fez um gesto afirmativo e ele apressou-se a ir buscar um dos charutos que comprara para Teobaldo.

Durante o café conversaram. O homem declarou que era muito desgraçado: fora trabalhar, tinha o ofício de ferreiro, mas estava preso havia mais de três anos e só agora conseguira fugir, depois de frustradas tentativas, que só lhe renderam novas penas e novos castigos.

- Por que o prenderam?

- Porque eu matei minha mulher. Havia muito tempo que andava desconfiado dela, um dia escondi-me, e vi entrar um homem no meu quarto e, quando a descarada apareceu para se deitar com ele, meti-lhe uma faca na barriga!

- E o sujeito?

- O sujeito ficou atrapalhado, atirou-se, sem saber o que fazia, por uma janela e foi cair embaixo meio morto. Um diabo de um vizinho que eu tinha, foi quem me entregou à Polícia. Fui preso na mesma ocasião.

- E agora, você o que tenciona fazer?

- Não sei. Dizem que o Brasil vai ter guerra com o Paraguai, eu marcharei para a guerra. Fugi. Porque todos os dias pensava em fugir e afinal apareceu uma ocasião. Anteontem, às Ave-Marias, o carcereiro foi à minha célula buscar como de costume a tigela em que ele dá comida à gente; mas, em bem o cabra não se tinha abaixado para a apanhar, ficou mais roxo que uma beringela e caiu de focinheira no chão, sem tugir, nem mugir. Eu peguei-lhe assim pelo braço e vi que o bruto estava mole; então saquei-lhe fora esta farda, que é a que ele lá usam, vesti as calças do bicho, pus o boné na cabeça, e por aqui é o caminho! Mas um diabo de um guarda desconfiou da marosca e eu - Pernas para que te quero! Foi o meu mal! Abri pelo corredor, ganhei a rua, mas o demônio do guarda atrás. Enfiei pela primeira porta que encontrei, era a casa de uma quitandeira, varei até o quintal, havia um muro, saltei-o, estava em um cortiço, havia um cercado, atravessei-o nem sei como, e vi-me de repente em um curral; havia um telheiro, trepei-me para ele e dai passei a um telhado mais alto. Atravessei quatro ou cinco telhados, correndo como um gato e em risco de me levar o diabo a cada instante! Afinal ouvi gritar na rua: "Ali está ele!" E vi seis soldados que escoravam a casa. Então, segurei-me a uma goteira, desci, pilhei-me em outro telhado e deste passei adiante; mas os policiais me acompanharam da rua, apitando, cercando os quarteirões, entrando pelas casas e, quando eu dei fé havia povo por toda a parte, nas chaminés, nas árvores, nos muros, e atiravam-me pedras e pedaços de pau enquanto outros se divertiam com a minha pelotica! Já estava para ser agarrado, porque não tinha mais forças e via-me cercado, quando por um acaso do céu escorreguei pelo telhado dessa casa que fica ali ao pé e vim ter àquela janela por onde entrei!

O assassino tomou fôlego e acrescentou depois, mudando de tom:

- Quis Deus que eu encontrasse uma alma boa; aqui estou e não me vexo de dizer a verdade. Vossemecê pode agora fazer de mim o que entender; não lhe fico querendo mal por isso!

- Pode ir em paz, respondeu o Coruja; mas, se quiser ouvir o meu conselho, espere um pouco, não saia já. Olhe, ali tem uma bacia com água; lave-se, que você está sujo de sangue; depois tire essa roupa que o compromete, e vista a que lhe vou dar. Naquele toucador há pente. escova e óleo para o cabelo; arranje-se, durma um pouco e depois então saía. Para a sua viagem não lhe posso dar muito, mas aqui tem cinco mil réis.

- Vossemecê algum dia foi criminoso? perguntou o assassino.

- Criminoso somos todos nós, respondeu o Coruja.

- Mas nunca matou ninguém?

- Creio que não...

- Deus o conserve assim, moço!

O assassino lavou-se e vestiu uma roupa do Caetano e, depois de guardar o dinheiro que lhe dera André, beijou as mãos deste e saiu.

- Olhe, disse-lhe o rapaz que o fora acompanhar até à escada. Faça por ser bom e, quando precisar de qualquer coisa, apareça. Adeus.

XVI

Na manhã seguinte, em que Teobaldo encarregou ao Coruja de despachar Ernestina, viu-se este em sérios embaraços.

Que diabo havia ele de dizer àquela mulher?... Contudo era urgente tomar urna resolução, porque as coisas não podiam continuar pelo jeito que levavam...

A rapariga, mal calculou pelo exórdio onde chegaria o sermão de André, ergueu-se do lugar em que estava, avançou contra ele de punhos fechados e gritou-lhe sobre o nariz:

- Bem desconfiava eu! Você mesmo é quem me anda intrigando com o outro, seu cara do diabo! Desconfiei, e eu, quando desconfio, não me engano!

- Não diga assim...

- Peste! Um bicho feio, que parece estar sempre a maquinar maldades!

- As aparências muita vez enganam...

- Qual! enganam o que? Pensam e conversam lá o que bem entendem a meu respeito e depois vem este basbaque me atenazar os ouvidos: "Porque a senhora deve convir, porque a senhora deve perceber que isto prejudica Teobaldo!" Prejudicar em que?! Eu porventura exijo dele alguma coisa! Já alguma vez lhe pedi dinheiro?

Vocês falam de boca cheia! Onde iriam descobrir uma rapariga de minha idade, jeitosa corno eu sou e que nada mais pede do que um pouco de delicadeza! Brutos! Ainda por cima se queixam, como se eu lhes desse prejuízos!

- Desculpe, mas dá..

- Prejuízo? Em que? Recebo porventura alguma coisa das mãos dele? Exijo algum sacrifício?

- Não, mas perturba...

- Perturbo? Como?

- Perturba a vida de Teobaldo. Olhe, enquanto a senhora estiver aqui, ele não voltará à casa e, como sabe, isto é já um sério transtorno para quem precisa cuidar do futuro...

- Qual! Ele se não vem para casa, é porque anda lá por fora na pândega! Encontra por lá em que se divertir!

- Juro-lhe que se engana...

- A mim não embaçam!

- E ninguém pensa em tal; a senhora é quem procura iludir-se; já devia ter percebido que Teobaldo não está agora em circunstâncias de a tomar a seu cargo...

- Porque tem outras!

- Não sei; isso é lá com ele.

- É um ingrato!

- Pode ser.

- Um cínico!

- Não acho.

- Você é tão bom como ele!

- Quem me dera.

- Uma corja, ambos!

- São opiniões!

- Dois imbecis

- Talvez...

- Dois idiotas!

O Coruja não replicou mais e pôs-se a passear ao comprido do quarto, muito aborrecido com o insucesso das suas palavras.

Depois, tendo ido e revindo mais de vinte vezes, voltou-se de novo para Ernestina:

- Mas a senhora por que não se vai embora? É muito melhor... Em casa nada lhe falta, tem tudo! Vá! deixe em paz o meu amigo...

- Não deixo!

- Mas isso não é justo... Que interesse tem a senhora em fazer semelhante coisa...

- Não sei! Ele é o homem que eu amo, acabou-se!

- E que culpa tem ele disso, coitado?

- Não sei. Amo-o!

- Pois não o ame...

- Não posso.

- Ou, se o ama, não queira fazer-lhe mal.

- Ele que não faça a mim!

- Ele? ele não lhe faz mal.

- Como não? Pois o senhor ainda acha pouco? Pois então eu desço da minha dignidade e venho procurá-lo aqui; ponho-me aos pés dele, declaro que estou disposta a ser uma escrava, se ele me tratar com carinho, e a única resposta que recebo é um coice?

- Coice!

- Decerto; quando um homem faz com uma mulher o que Teobaldo faz comigo, dá coices!

- Mas, perdão, minha senhora, Teobaldo falou-lhe com toda a franqueza. A senhora apresentou-lhe um contrato, não é verdade? pois bem, ele não o aceitou. A senhora é que faz mal em, no lugar de retirar-se dignamente, ficar aí dias inteiros e fazer o que tem feito..

- Não saio! Pode dizer o que quiser, é inútil; não saio!

- Mas há de convir que com isso pratica uma arbitrariedade. Teobaldo não lhe deve nada...

- Deve-me tudo! deve-me dedicação e amor!

- Mas os sermões, quando não são encomendados...

Nisto, o diálogo foi interrompido pelo barulho de um carro que parava à porta da rua. E logo em seguida ouviram-se ligeiros passos no corredor e uma voz de mulher, que gritava:

- O Teobaldo ainda mora aqui?

Coruja correu na direção da voz, enquanto Ernestina se instalava na poltrona, afetando ares de dona de casa e dizia com todo o desembaraço:

- Entre, quem é?

Leonília apareceu à porta do quarto, hesitante; olhou em torno de si, como quem receia haver-se enganado:

- Desculpe, mas supunha que ainda morava aqui um rapaz que procuro...

- Teobaldo?

- Justamente.

- É aqui mesmo, respondeu Ernestina. Que deseja dele?

- Desejo falar-lhe. A senhora vem a ser...

- O que não é da sua conta. Se tem algum recado a deixar, eu me encarrego de transmiti-lo a Teobaldo.

Leitura 9

- Eu não a iludi... explicou André, corando. Pelo menos nunca tive a idéia de iludir pessoa alguma...

- Então por que não casou já por uma vez?

- Porque tenho encontrado dificuldades com que não contava...

- Ora! é sempre a mesma cantiga! Dificuldades! e afinal de contas o senhor não é capaz de dizer que dificuldades são essas!? Eu, por mim, confesso que já desconfiei do negócio e, quando dou para desconfiar, é o diabo! Para o que, veja-se: dantes, quando o senhor ainda não estava tão ligado a nós, trazia-nos quase sempre algum presente: eram cortes de chita, eram lenços, latas de doce, camarotes de teatro... e hoje?! Hoje é isto que se vê! O senhor esbodega-se lá por fora e já faz muito quando nos traz uma desgraçada libra de café! Ainda se gastasse consigo, vá! mas nem isso, que o senhor anda mais bodega que um cigano! tem a roupa a cair aos pedaços, os sapatos que é uma vergonha, só a camisa é decente, porque a engomamos nós! Ora, pois, a coisa está a entrar pelos olhos! Pois então, quando o senhor ganhava muito menos, podia gastar consigo e conosco, e agora, que faz por mês o dobro do que fazia, não tem com que comprar um chapéu, para não se apresentar com essa rodilha de limpar panelas, que até encalistra a quem se dá com o senhor?

- É exato... é exato, dizia o Coruja, envergonhado de si mesmo.

- Ora, pois! Isto é coisa! Gato ou raposa! Quanto a mim, digo-lhe com franqueza, ninguém me tira da cabeça que o senhor o que tem é por aí algum diabo de uma mulher que lhe come até à última!

O Coruja, ao ouvir, fez-se cor de sangue e balbuciou escandalizado:

- A senhora está enganada, Sra. D. Margarida!...

- Pois, então, se não é uma mulher que o está depenando, o senhor deu para jogador...

- Jogador! Eu?

- Sem dúvida!...

- Deve duvidar, sim, senhora! Eu nunca joguei!...

- Então deu para avarento!

- Se eu tivesse pecúlio ajuntado já não estaria solteiro.

- Pois então não sei! A verdade, porém, é que o senhor ganha e o dinheiro não aparece!...

E essas recriminações iam longe. Inezinha em compensação fazia justamente o contrário:

- Não se de por achado, seu Miranda, dizia-lhe ela, sempre muito mole e muito por tudo - aquilo em mamãe é gênio...

- É que não me convém casar, sem a certeza de que nada faltará à minha mulher... respondeu ele.

- Decerto.

- Acho que é um crime obrigar uma menina a sofrer necessidades.

- Acho que ninguém tem o direito de oferecer-se para marido, enquanto não pode ser pai...

- A senhora, se quiser esperar que eu melhore de condições, espere; se não pode, então o caso muda de figura.

- Eu estou por tudo, seu Miranda.

- Visto isso é preciso fazer com que sua mãe se deixe daquelas coisas...

- É gênio, coitada! Olha, a mim nunca o senhor ouvirá dizer nada... O que tem de ser, traz força. Do que serve a gente se amofinar?... Consumações não adiantam nada...

E, como sempre, terminava com a sua invariável frase:

- Mais vale a nossa saúde...

O Coruja, todavia, mortificava-se deveras com a situação. Por coisa alguma ele seria capaz de confessar o verdadeiro motivo da sua penúria, e só a idéia de passar por um impostor aos olhos da velha era o bastante para lhe tirar todo o sossego do espírito. O fato de haver prometido casamento a uma rapariga e não ter certeza de poder cumprir honestamente com o prometido tomava naquela imaculada consciência as proporções de um crime monstruoso.

Vinham-lhe ímpetos, às vezes, de escrever uma carta a Margarida, dizendo que não contasse com ele e desse a filha a um outro que a desejasse; mas o Coruja ao lembrar-se disto já estava a ver defronte de si o tremendo vulto da velha, a gritar, com as mãos nas cadeiras:

- Então! Que é que eu dizia?! O homem esteve ou não esteve divertindo-se à nossa custa? É ou não é um impostor? Ora pois isto tem jeito?... Enganar assim uma pobre rapariga, faze-la perder o seu melhor tempo e depois virar-lhe as costas!

Além de que, sendo ele tão geralmente antipatizado e desquerido, prezava do fundo da alma aquela condescendente afeição de Inez, como um bem inesperado e singular que lhe viera quebrar o monótono abandono em que vivia. Posto que a sua extrema bondade o levasse constantemente a se esquecer de si mesmo para só cuidar dos outros, não podia ficar indiferente à vista daquele fato, que lhe enchia o coração com esta frase: - Eu também tenho uma mulher que me ama!

Amá-lo-ia?

Talvez não; mas o que para qualquer outro não passava de simples afabilidade vulgar e obrigada, para ele era a extrema manifestação da ternura feminil, tão habituado estava à indiferença e ao desamor dos seus semelhantes.

Para quem se acha nas trevas qualquer claridade que chega é um belo foco de luz.

- Pela primeira vez julgou possível ter uma companheira ao lado de sua vida, e essa idéia o transportou de júbilo; ser bom para todos, indiferentemente, é um gozo, mas ser bom para quem nos retribui os sacrifícios com amor e caridade, isso já é o que se chama a felicidade.

E amou-a, idolatrou-a com a alma ajoelhada, cheia de reconhecimento e respeito; amou-a com os crentes amam Deus, pedindo que os não repila nunca do seu seio.

No casamento. entretanto, ele não via apenas o caminho mais curto para chegar à felicidade, via também um meio de dirigir e regular as suas qualidades morais, dando-lhes um objetivo; o casamento era por bem dizer o modo de reunir em uma só criatura a humanidade inteira, por quem o Coruja ter-se-ia dedicado se pudesse.

Ou quem sabe se ele, considerando a grandeza exagerada do seu coração não queria dividi-lo com Inez, à semelhança de um milionário pródigo que, receoso de não poder sozinho gastar o seu tesouro, convida uma mulher para ajudá-lo?

- Por conseguinte, a idéia daquele amor, ao mesmo tempo que o consolava o constrangia.

- Mas, que fazer?... pensava. - Casar, sem dispor de meios para isso? - não! - Negar a Teobaldo o seu auxílio - nunca! Logo, o melhor e mais acertado era ir protelando o seu desígnio, até que chegasse a ocasião oportuna para realizá-lo condignamente.

Essa ocasião, porém, só chegaria com uma grande transformação na existência de Teobaldo.

André esperava que, de um momento para outro, o amigo encontrasse trabalho, modificasse os seus hábitos e endireitasse a vida.

- O que mais o atrapalha, dizia consigo - são as mulheres... ele, coitado, não tem culpa, porque até lhe foge, como tenho já observado, mas as malditas não se lhe despregam nem à mão de Deus Padre! Não sei que diabo tem o rapaz para as enfeitiçar deste modo!... São bilhetes, recadinhos, visitas, uma verdadeira perseguição! Ah! se eu fosse assim querido!.

E aquelas duas criaturas, inteiramente opostas, invejavam-se em silêncio, não com essa inveja mesquinha que se transforma em raiva, mas nessa outra que produz admiração e respeito.

- Se eu fosse feliz como ele... dizia cada um por sua vez, quando falava no outro.

E tinham-se ambos na mesma conta de infortunosos: um por ser desejado demais e o outro por bem em demasia.

Em demasia, está claro, porque o Coruja, naquela aberração, inculpado e santa, do seu amor pelos semelhantes, compadecia-se indistintamente de todo e qualquer desgraçado, fosse um faminto ou um assassino, um ladrão ou uma prostituta.

Uma noite, já tarde trabalhava ele, como de costume, na sua secretária, quando ouviu um forte rumor na janela que dava para o telhado, e logo depois aparecer aí uma cabeça de homem, cujos olhos brilhavam como os do tigre.

Espantou-se, mas, tornando a si, disse com toda a calma:

- Entre.

Não era necessário semelhante permissão, porque o homem de olhos de tigre acabava de transpor a janela e deixava-se cair no soalho, ofegante e prostrado de fadiga.

- Deixe-me descansar primeiro, disse, quase sem poder articular as palavras; depois o senhor fará de mim o que entender!...

Só então o Coruja, correndo a uma das janelas da frente, deu pelo motim em que estava a rua. Aquele homem vinha naturalmente perseguido por soldados e talvez pelo povo; e, de telhado em telhado, conseguira chegar até ali.

Pela atitude dos que se aglomeravam lá fora, compreendeu que ninguém desconfiava do destino do fugitivo, pois a atenção deles voltava-se para o telhado de uma casa, donde, a julgar pelas exclamações e pelas pedradas que lançavam, esperavam sem dúvida ver surgir o perseguido.

- Bom, disse o Coruja; não sabem que você está aqui.

E fechou as janelas.

O sujeito vinha completamente esfarrapado, a ponto de se lhe perceber a carne das pernas e do tronco, cheia de contusões e esfoladelas que vertiam sangue.

Uma enorme cabeleira, hirsuta e destratada, cobria-lhe a cabeça e ligava-lhe às grandes barbas grisalhas, dando-lhe um aspecto terrível de facínora. Viam-se-lhe as palmas das mãos rasgadas e ensangüentadas, porque o desgraçado fizera talvez um quarto de légua de gatinhas pelos telhados.

De tão cansado que vinha não podia respirar sem abrir de todo a boca, a patentear a dentadura enegrecida de fumo e embaciada pelo álcool.

Logo que se achou menos convulso, volveu em torno os olhos, com o assombro de uma fera perseguida, e pediu um pouco dágua - por amor de Deus.

O Coruja, que estava a contemplá-lo silenciosamente, foi buscar uma bilha cheia e trouxe-lha, dizendo:

- Aqui tem, amigo.

Então o homem, tomando a bilha entre as mãos enormes e sangrentas, olhou-o espantado, luzindo nos seus grandes olhos, verdes e arregalados, uma expressão de terror e de pasmo.

- Beba, acrescentou o Coruja, batendo-lhe no ombro; não tenha medo, que aqui não será perseguido. Beba sem receio e descanse, que ao depois eu lhe darei de comer, se você tem fome

Ao ouvir isto, o homem, que nesse instante acabava de despejar de um trago a pilha inteira, começou a fitar o Coruja e a rir apalermadamente.

Este arrastou para junto dele uma poltrona que havia no quarto, e disse-lhe com um gesto que se assentasse.

Não se ergueu o foragido e, cada vez mais admirado, engatinhou-se para a poltrona e ia assentar-se nela, olhando de esguelha para o Coruja, quando um rumor no corredor fê-lo dar um salto e, de mãos abertas, os dedos espetados, os olhos com a mesma primeira expressão da janela, regougou assombrado:

- Quem é? Quem é?!

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Leitura 8

E o Caetano, aproveitando esse bom humor, correu ao seu quarto e voltou com uma pequena caixa de folha.

- Vossemecê tenha a bondade de servir-se...

Teobaldo retirou duas notas de vinte mil réis.

- Estás satisfeito, usurário? Não sabia que era essa a tua vocação!

- Agora, Vossemecê faz-me um favor...

- Ainda?

- É de guardar-me esses objetos; podem roubá-lo e...

- Mas, que diabo! eu não devo ficar com o dinheiro o com o penhor!

- Vossemecê pagará depois os juros...

- Também já entendes de juros, hein?...

- Oh! se entendo.. . Fosse vivo nho Miló, coitado! que ele lhe daria as contas que eu sabia fazer de cabeça?... Nunca me passaram a perna num vintém!

- Pois olha, se com todos fazias negócios desta ordem, podes limpar as mãos à parede!

O velho, satisfeito com o que acabava de dar-se, prendeu por suas próprias mãos a corrente ao colete do amo, meteu-lhe o relógio na algibeira e afastou-se receoso de comove-lo com a sua presença.

Logo depois Teobaldo saiu e dirigiu-se diretamente para o colégio onde trabalhava o Coruja.

Encontrou-o ainda ocupado com a última aula e dispôs-se a esperar por ele.

- Tu por aqui? disse André, quando lhe apareceu no fim de meia hora.

- É verdade, procurei-te para te pedir um obséquio.

- Estou às tuas ordens.

- Quando fores para casa, se ainda encontrares lá aquele estafermo, despede-o por uma vez e dize-lhe que eu não voltarei enquanto me constar que ela não se foi embora.

- A Ernestina? mas sabes que ela está doente?

- Apenas constipada; não é motivo para não ir.

- Coitada. Ela parece gostar tanto de ti...

- De acordo, mas eu é que não tenho nada com isso. São muito engraçadas estas senhoras: entendem que um homem, pelo simples fato de que as agrada e lhes merece amor, deve ficar submisso às ordens delas.

- Mas...

- Imagina tu que vinte mulheres pensam do mesmo modo e ao mesmo tempo a meu respeito; algumas, pelo menos, ficarão fatalmente sacrificadas, porque a gente não pode dedicar-se a tantas... E note-se que nenhuma delas admite divisões de ternura; cada uma quer tudo para si e leva o egoísmo ao ponto de não consentir que o objeto do seu amor pense em outra pessoa que não seja ela! Ah! É uma bela coisa, não há dúvida!

- Escolhe uma entre todas e dedica-te só a essa. A Ernestina, por exemplo...

- Não, não quero Ernestina, como não quero nenhuma. Trata tu de despachá-la, que eu me encarrego das mais. Daqui, vou já principiar a cuidar disso; é preciso não perder tempo. Adeus.

Coruja quis ainda dete-lo:

- Olha, ouve!

- Nada! Faze-me o que te pedi e, se ela de todo não quiser sair, amanhã mesmo nos mudaremos. Adeus.

E ganhou a rua, tomando logo a direção da casa de Leonília.

Durante o caminho fez ainda várias considerações sobre aquela "terrível fatalidade" que lhe prendia aos calcanhares uma inevitável cauda de mulheres. Suplício estranho, contra o qual não havia remédio possível, a não ser que ele fugisse para um lugar onde só houvesse homens.

Teobaldo tinha um desses tipos de que em geral gostam infinitamente as senhoras de moral fraca. Nele tudo parecia feito de propósito para cativá-las: os seus grandes olhos apaixonados, ora ternos, ora atrevidos, tão prontos a desmaiarem de amor como a ferirem com arrogâncias; o seu pequeno bigode crespo, arrepiado; a sua boca desdenhosa, aristocrata e sensual a um tempo; a sua fronte de homem de talento, sobre a qual uma bela cabeleira caía em anéis que se agitavam ao menor movimento da cabeça; o seu largo pescoço de estátua, pálido e rijo como o mármore; o seu perfil sereno e firme, orlado pela fina transparência da epiderme; as suas mãos longas e formosas; o seu porte gracioso e desafetadamente altivo; a sua voz Insinuante e ligeiramente irônica; a sua verbosidade original, cheia de espírito e alheia aparentemente ao efeito que levantava; tudo isso, e mais os pequeninos nadas do seu todo, que ninguém poderia determinar, mas que todos sentiam como se sente um perfume sem saber donde ele vem: tudo isso parecia destinado a encher de sonhos a fantasia das mulheres ávidas de ideal. E cada uma delas via nele o homem ambicionado; e cada uma, por amá-lo como as outras, entendia-se com o direito exclusivo de persegui-lo.

Triste martírio para quem, como Teobaldo, não queria aceitar favores de qualquer gênero que fosse, e para quem era necessário cuidar seriamente do futuro.

E a graça é que a pobreza, a que ele se via agora reduzido, longe de ser uma barreira de resguardo contra aquela invasão, era como que um novo atrativo ajuntado aos seus encantos. E quanto mais fugia delas, com tanta mais insistência o rebuscavam; quanto era maior a sua indiferença, tanto maior o empenho que elas faziam. Se as tratava pelo modo por que tratou Ernestina, se as ameaçava, se lhes chegava a bater, como fizera a diversas, então é que o não deixavam de todo e a perseguição contra o belo desgraçado tomava um caráter horroroso.

E ele, que a princípio com isso se divertia, chegando até a julgar-se lisonjeado no seu amor-próprio, já por último andava sinceramente aborrecido com tanto amor; já o irritavam os beijos soluçados e as delirantes palavras de ternura. - Ah! não queria ouvir falar em paixão, e fugia de certas mulheres como um criminoso foge da polícia.

A Ernestina, então, uma atriz de segunda ordem em tudo, mas que não perdia as esperanças de conquistá-lo, essa o trazia num cortado. Era bispá-la, quebrava ele a primeira esquina, metia-se no primeiro corredor, enfiava pela primeira escada, e, apesar disto, não conseguia escapar-lhe, porque o demônio da mulher parecia ter faro de cão matreiro.

Quando ele chegou à casa de Leonília, disseram-lhe que esta havia-se mudado para um hotel na Tijuca, porque o médico assim lho ordenara.

- Está doente? perguntou Teobaldo.

Responderam-lhe que sim, que lhe aparecera febre, uma enorme sobreexcitação nervosa, fastio e dores na caixa do peito.

Entrou na alcova: O isolamento desta, em vez de o impressionar desagradavelmente, trouxe-lhe ao contrário um certo prazer íntimo de quem se vê livre de uma maçada que já tinha como inevitável.

Deitou-se na cama e tomou um livro que estava sobre o velador. Dentro do livro havia uma carta sobrescritada para ele.

- Escreveu-me, mas não se animou a remeter-me a carta, pensou, abrindo-a.

Teobaldo.

És um miserável. Melhor seria que, em vez de procederes infamamente para comigo, como acabas de proceder, me houvesse falado logo com toda a franqueza e tivesse me mandado para o diabo. Seria mais simples e muito mais digno. Até hoje homem nenhum teve a petulância de fazer-me a vigésima parte do que tens feito; envergonho-me de me haver iludido ao ponto de contar, já não digo com o teu amor, que tu só amas a ti próprio, mas ao menos com o teu reconhecimento, que era dever teu para comigo.

Saíste-me vulgar e mesquinho como os outros - paciência!

Ontem fui â tua casa; mas, ao subir as escadas ouvi uma voz de mulher, espiei pela fechadura, vi-te a discutir e a ralhar com uma sujeita; alguma cena de ciúmes! quis entrar e confundir a ambos, resolvi, porém, não ligar tanta importância a um fato que afinal não a merecia, e sal com a intenção de nunca mais te procurar.

"Ao chegar á casa, ardia em febre; à noite não pude me levantar da cama; veio o médico, aconselhou-me todo o repouso, e que eu evitasse contrariedades e que, mal me achasse em estado de sair, procurasse um arrabalde bem tranqüilo e salubre.

"Não sei qual é a minha moléstia, posso apenas afiançar que estou muito doente, nervosa a um ponto de fazer lástima, sem poder comer e sem poder dormir; a boca muito amarga, a caixa do peito muito dorida, e que a causa de tudo isso, - és tu.

"Não obstante perdôo-te, porque não és o culpado de te amar eu tanto. Só desejo que nunca te façam passar pelo que me tens feito sofrer.

"Adeus. Amanhã sigo para a Tijuca, e é natural que em breve esteja de viagem para a Europa. Se quiseres me ver antes disto procura-me e, 8e não queres, remete-me o teu retrato. Adeus.

Assinara o nome dela.

- Sempre a mesma coisa!... pensou Teobaldo com um gesto de aborrecimento; mas foi interrompido pelo criado, que vinha fazer entrega de uma carta que deixara a senhora.

- Uma carta!... Para mim!... perguntou o rapaz.

- Sim, para o Sr. Teobaldo.

Lembrou-se este então de que a outra, que acabava de ler, não lhe tinha sido remetida e abriu a nova com uma certa curiosidade.

Querido Teobaldo.

Peço-te que não me procure. Deixo esta casinha por interesses particulares e é natural que do lugar a que me destino siga logo para a Europa.

Sou inconstante, perdoe, é uma questão de temperamento I

Adeus. Seja feliz!

Teobaldo sorriu ao terminar a leitura.

- Coitada! disse consigo. - Foi infeliz! esqueceu-se de inutilizar a outra carta, sem o que talvez produzisse esta o efeito a que se destina. Definitivamente não nasci para sofrer pelas mulheres!...

E ganhando de novo a rua:

- Daqui nada mais tenho a recear! Desta estou livre!

Ao entrar na cidade encontrou logo o Aguiar.

- Amanhã, hein? disse-lhe este, não te esqueças!

Teobaldo já se não lembrava de que.

- Oh! homem, da festa de meu tio! Amanhã é o dia dos anos de Branca.

- Ah! sim! É bem possível que eu vá.

E seguiram juntos para tomar alguma coisa.

XV

Enquanto para Teobaldo a vida corria desse modo, oscilando entre amarguras e contrariedades de todo o gênero; enquanto ele sofria por não ter coragem para abrir por uma vez contra os seus hábitos e tomar energicamente um novo caminho, o Coruja ralava-se de serviço, preocupado apenas pela idéia de que nada viesse a faltar ao seu amigo.

Daí começou para André uma triste época de sacrifícios ignorados e obscuras privações. O diretor do colégio chegou a dizer-lhe que não se apresentasse tão mal trajado; ele, com efeito, trazia agora um fato que, à força de uso, perdera de todo a cor primitiva e já em certos lugares se mostrava transparente.

A sua economia, depois que Teobaldo precisava de socorros, parecia milagrosa: só comprava roupa já usada e calçado já servido, e com este regime, e mais sem ter nenhum vício e comendo a expensas do colégio, passava semanas inteiras sem gastar um vintém com a sua pessoa.

Entretanto, não vivia alegre, porque, apesar de tamanho heroísmo, Teobaldo ainda sofria privações.

Um outro motivo do seu desgosto era D. Margarida. A velha, desesperada com a demora do casamento da filha, acabara por perder de todo a paciência e desabafou uma vez defronte do Coruja:

- Ele, se não tinha intenção de casar, por que iludiu a pobre rapariga?

Leitura 7

Adormeceu em meio deste raciocínio e tão profundamente, que só acordou no dia seguinte à uma hora da tarde.

A despeito disso não teve vontade de sair da cama; um entorpecimento doentio parecia chumbá-lo ao colchão; e com os olhos ainda cerrados, deixava que sua consciência funcionasse à vontade, grupando em torno dela um mundo de exprobrações.

Para mais lhe enervar o espírito ali estava aquele insociável aspecto do quarto de hotel, onde se sentiam ainda os rastros da última mulher que o habitara.

Teobaldo, despertando afinal, reparou para tudo isso, minuciosamente, com o doloroso prazer de quem repisa de propósito uma parte do corpo que está dorida e machucada.

- A cama era muito larga, com um grande colchão de molas, onde o corpo se abismava; os travesseiros monstruosos e enfeitados de rendas e fitas; e por cima um imenso cortinado de labirinto, enxovalhado de pó. Sobre o mármore do lavatório via-se a bacia de gigantescas proporções, ao lado de uma porção de vasilhas de porcelana; e, em contraste com o resto, um miserável pedaço de sabão de 200 rs., fornecido pelo hotel. A o canto da pedra, esquecida sobre os rebordos do lavatório, havia uma escova de dentes, suja de opiato.

E todo esse aspecto de abandono e desleixo, todo esse falso conforto de quarto sem dono e nunca desocupado, tudo isso ainda mais o entristecia e acabrunhava.

Depois - o fato de não ter mudado de roupa e ver--se obrigado a vestir aquela mesma camisa da véspera também o torturava.

- Maldita Ernestina!

Pagas a dormida e uma xícara de café que lhe deram, não lhe ficava dinheiro suficiente para o almoço; vestiu--se, disposto a sair logo. Mas, enquanto se aprontava, ouviu no quarto imediato uma voz grossa, de homem, que altercava com o criado.

- Esta voz!... pensou o rapaz.

E, tomando de curiosidade, abriu a porta e espiou para o corredor, justamente quando o seu vizinho ia a sair.

- Mas, não me engano! exclamou. É ele! é o marido da tia Gemi! o velho Hipólito!

- Velho, não! respondeu o homem. Velho é trapo!

E a sua testa enrugava-se em orlas regulares, como água onde caísse uma pedra.

E reparando:

- Ora, espera! Você é o Teobaldo!...

- Em carne e osso, meu tio.

- As orlas da testa do velho acentuaram-se mais, numa expressão de contrariedade, que ele não procurava disfarçar; circunstância que alterou no mesmo instante o ar de contentamento que se havia formado no rosto do moço.

- Não sabia que o senhor estava na corte... disse este, para quebrar o silencio.

- Cheguei ontem e tive o caiporismo de meter-me no diabo deste hotel, que afinal me parece o menos próprio para mim! Com a breca, só vejo franceses e pelintras! E, demais, esfolam-me! Pedem-me os olhos da cara por dar cá aquela palha! Você mora aqui?...

- Não, senhor; vim apenas dormir esta noite: mas a ninguém lembra morar neste hotel. O senhor deve procurar outro. Como ficou minha tia?

- Bem. Está perfeitamente boa!

- Oh! dir-se-ia que o senhor dá notícias de sua mulher contra a vontade...

- É o meu gênio!

E, sem poder dominar-se:

- Demais, para que precisa você das notícias de sua tia? Parece-me que uma pessoa que, durante dois anos, não se lembrou dos parentes, não há de ter muito interesse por eles...

- Perdão! replicou Teobaldo. - Eu escrevi à tia Gemi por ocasião da morte de meu pai e depois creio que mais duas vezes; segundo, porém, a única resposta que recebi, quis acreditar que tanto ela como o senhor estavam persuadidos de que eu lhes escrevia para obter dinheiro, e...

- Ah, sim! Sua tia chegou a falar-me em dar-lhe uma mesada, mas, se me não engano, você foi o próprio a rejeitá-la.

- Não me lembro disso, mas é natural que seja exato.

- Pois eu me lembro perfeitamente e afianço que é.

- Bom.

E Teobaldo declarou o número da casa em que morava e pô-la à disposição do tio.

- Passe bem! respondeu este.

E, quando o rapaz havia-se afastado:

- Um peralta que abandonou os estudos, que não arranjou meios de vida, um pobre diabo! ainda vem para aqui com soberbias... Bata a outra porta, se quiser: comigo não se arranjará! Ah! eu logo vi que semelhante educação havia de dar nisto mesmo!

Entretanto Teobaldo sofria e sofria muito. Só quem já atravessou uma boa quadra de necessidade, quando se tem o estômago mal confortado e o coração cheio de orgulho, poderá julgar do desgosto profundo e do tédio homicida que o acompanhavam.

Maldita educação! Maldito temperamento! Compreender o seu estado e não poder reagir contra ele; sentir escorregar-se para o abismo e não conseguir suster a queda; haverá maior desgraça e mais dolorosa tortura?

A surda aflição que lhe punha no espírito a sua falta de recursos, a força de reproduzir-se, havia já se convertido em estado patológico, numa espécie de enfermidade nervosa, que o trazia sempre desinquieto e lhe dera o hábito de levantar de vez em quando o canto do lábio superior com um certo trejeito de impaciência.

Orgulhoso como era, a ninguém, a nenhum amigo, exceção feita do Coruja, confessava as suas necessidades e este fato ainda mais as agravava.

E quando em tais ocasiões lhe pediam dinheiro emprestado? Oh! não se pode imaginar que suplício para Teobaldo!

Principiava por lhe faltar a coragem de confessar que não o tinha; e, se o do pedido insistia, começava ele a arranjar pretextos, a remanchear, a prometer para daí a pouco, a mentir, como um caloteiro que deseja engodar um credor impertinente.

E, se o sujeito não desistia, Teobaldo dizia-lhe que esperasse um instante e corria a empenhar o relógio, a arranjar dinheiro fosse lá como fosse, contanto que não tivesse de confessar a sua miséria a outro necessitado.

Estes sacrifícios eram tanto mais rigorosamente cumpridos, quanto menos seu amigo era o sujeito que lhe fazia o pedido; não representavam desejo de servir, mas pura e simples manifestação de vaidade.

Quando, porém, o pedinchão lhe era de todo desconhecido, Teobaldo preferia passar por mau e respondia-lhe com a lógica de um sovina, e aos mendigos negava a esmola rindo, fingindo não acreditar nas lágrimas de fome que muita vez lhes saltavam dos olhos.

XIV

Voltou a casa às horas de jantar, e mais aborrecido do que nunca. Para isto contribuía em grande parte a insociável catadura com que o tio recebeu.

Ao entrar na alcova soltou uma exclamação:

- Pois a senhora ainda está aí? perguntou ao dar com Ernestina estendida na cama. - Ora esta!

- Você é um malvado! respondeu ela com dificuldade, por causa de uma formidável rouquidão. Você é um judeu!

- Está incomodada?

A teimosa meneou a cabeça afirmativamente e explicou, mais por mímica do que por palavras, que aquela sua ida à janela a pusera naquele estado.

- Estou ardendo em febre, disse. - Seu amigo chamou um médico, foi buscar os remédios e deu-me um suadouro. Creio que vou transpirar. É preciso não abrir a janela.

- Pois eu hei de ficar fechado aqui com este calor? Ora, minha senhora!

E o pior, pensava ele, é que estou sem vintém.

Entretanto, desceu ao banheiro, lavou-se, mudou de roupa e, antes de assentar à mesa de jantar, chamou pelo Caetano e, entregando-lhe o seu relógio e a sua corrente, ordenou-lhe que levasse esses objetos a uma casa de penhores.

- Irei depois, objetou o criado: - por enquanto tenho de servir o jantar.

- E o Sabino?

- O Sabino desapareceu há três dias.

- Bem, nesse caso irás depois.

E mais baixo:

- A Ernestina almoçou?

- Bebeu um caldo. O médico recomendou que não lhe dessem nada de comer.

- Bom. Não te descuides dela.

- É verdade, acrescentou o criado, - aqui está urna carta de Minas para vossemecê.

- Por falar nisso: o Hipólito chegou; já sabias?

- Ainda não senhor. Vossemecê falou com ele? Como ficou sinhá Gemi?

- É dela justamente esta carta. Vejamos.

Querido sobrinho - Teu tio segue amanhã para aí, vai tratar da compra de um engenho e conta demorar-se um mês ou mais: desejaria eu que o 'procurasse logo que esta recebesses. Ele há de falar--te sobre um pedido que lhe fiz a teu respeito: é uma questão de mesada, visto que, segundo me consta, tens, aí, depois da morte de teu pai, lutado com grandes dificuldades. Eu, se há mais tempo não fui ao teu socorro, é porque teu tio está cada vez mais apertado em questões de dinheiro e não queria por coisa alguma entrar em acordo comigo

Mas agora consegui dele prometer-me que te havia de procurar e que te daria 50$ por mês; não é muito, bem sei, mas com esse pouco e alguma boa vontade poderás continuar os estudos, que muito lamento haveres interrompido

Acredita, meu filho, que, se a coisa dependesse só de mim, não chegaria a sofrer a menor privação; posto que nunca te lembres desta tua pobre tia, que muito te ama e quer.

Adeus. Receba um abraço, dá lembranças ao Caetano e, quando puderes, vem fazer um passeio à fazenda.

O criado, que ouvira atentamente a leitura, chorava de alegria, quando o amo acabou a carta.

- Sim senhor! Gostei! exclamou ele - não esperava outra coisa de sinhá Gemi!

- E no entanto, respondeu Teobaldo, nada disto me adianta, pois já estive hoje com meu tio e recusei de antemão a mesada!

- Pois vossemecê recusa a mesada de sua tia?

Não é por ela, é por aquele malcriado do Hipólito.

- Vossemece faz mal.

- Embirro com ele. Acabou-se! E erguendo-se da mesa: - Mas que ainda fazes aí? Dá-me o café e vai onde mandei. Anda! - Então! Não te mexes?

Caetano dirigiu-se para a porta, mas voltou hesitando

- Então! fez Teobaldo.

- É que, se vossemecê permitisse.. . eu tenho aí algum dinheirinho, que...

- Não, não, obrigado, meu amigo, não te incomodes; desejo mesmo empenhar o relógio... Anda! Vai!

- Então faça ao menos uma coisa...: empenho-o em minhas mãos; sempre é mais seguro...

- Ah! Que és mais impertinente do que o próprio Samuel! disse o rapaz.

sábado, 22 de agosto de 2009

Leitura 6

Ela aceitou afinal e o Coruja afastou-se.

No fim de um quarto de hora voltava ele com uma bandeja nos braços.

- Veja se consegue sempre meter alguma coisa no estômago, dizia a arranjar a mesa; eu lhe farei companhia. Vamos.

Ernestina arrastou-se ainda muito chorosa até à mesa e, entre suspiros, principiou a comer. O Coruja ao seu lado desfazia-se em solicitudes, sem aliás conseguir animá-la.

- Oh! mas é que dói muito semelhante ingratidão! exclamava ela com a boca cheia. Um rapaz, por quem eu seria capaz de dar a vida, tratar-me deste modo, dizer-me cara a cara o que me disse e, afinal, sair como saiu, desprezando-me, nem que se eu fosse um cão tinhoso!

- É que ele estava hoje de mau humor, coitado! arriscou André. Há de ver que amanhã já a tratará de outro modo...

- Qual! amanhã fará pior; tola fui eu em mostrar-me apaixonada Ingrato!

O professor empregou ainda alguns esforços para tranqüilizá-la e depois confessou que estava muito atrapalhado de serviço e precisava continuá-lo.

- Não me posso descuidar um instante, acrescentou. É um trabalho com pressa. Olhe, a senhora fique a seu gosto, está em sua casa, se precisar de qualquer coisa é só chamar por mim. Com licença. Até logo.

E, enquanto ele se afastava, muito feio com o seu ar giguento e mal amanhado, Ernestina murmurava:

- Foi-se aquele ingrato e ainda por cima deixa-me aqui este maldito Coruja, que a gente só de olhar para ele parece que fica doente! Credo! Que estupor!

XIII

Teobaldo saiu de casa verdadeiramente aborrecido.

- Malditas fossem todas as mulheres! Maldito fosse ele, que não conseguia dar um passo sem tropeçar logo num rabo de saia! Arre! Era preciso despedir-se de Leonília por uma vez e fazer com todas as outras o que fizera com Ernestina! Esta com certeza estava mais que despachada!

E, assim considerando pelo caminho, principiou a passar uma revista mental aos seus amores.

- No fim de contas, pensava, só trouxera de tudo isso conseqüências ridículas ou perniciosas, que serviam apenas para lhe atrasar a vida e afastá-lo dos seus verdadeiros interesses. Ah! mas desta vez havia de tomar uma resolução, uma medida séria! Naquele andar não conseguiria nunca fazer carreira... A ter de ter amores, que fossem estes com mulheres de quem lhe viesse algum benefício real: mulheres que, lhe abrindo os braços, abrissem-lhe também as portas de um futuro garantido e cômodo. Estava disposto a amar, sim senhor, contanto que lhe viesse daí algum proveito imediato para as suas ambições.

Com estes cálculos chegava ao largo de S. Francisco quando o Aguiar lhe bateu no ombro. Virou-se, sem ter tempo de compor um sorriso amável.

- Oh! Estás com uma cara! disse-lhe aquele.

- Não é nada! Tédio.

- Eu também não me sinto de bom humor. Dormi mal A noite passada e tive enxaqueca durante todo o dia. Vou beber para ver se distrai; queres vir também?

- Não, obrigado; estou incapaz de tudo.

- Anda daí.

- Está bom. Vamos lá.

E à mesa do botequim, defronte dos copos de cerveja:

- Mas, que diabo tens tu? perguntou Aguiar.

- Desanimado, filho, totalmente desanimado! Não imaginas a série de contrariedades que me sucedem todos os dias. Agora, para cúmulo de caiporismo, é o diabo da Leonília que entende perseguir-me de um modo atroz!

E contou minuciosamente o que ela fizera.

Aguiar abriu os olhos com exagero de espanto.

- Que! Pois seria crível? Ora, para que lhe havia de dar! exclamava a rir. Paixão aguda, com caráter pernicioso! Podre Leonília.

- Pobre, mas é de mim! emendou Teobaldo, muito preocupado.

- De ti? Tu o que és é um grande felizardo! disse o outro. As mulheres procuram-te e são capazes de ir ao inferno para te descobrirem!

- Não esta má fortuna! Dava-a de boa vontade a quem a quisesse!

- Deixa-te disso...

- Juro-te, meu amigo, que estou deveras aborrecido com tudo isto e que de bom grado abandonaria o Rio de Janeiro, se me achasse em condições de fazer uma viagem.

Depois de alguns outros copos, os dois rapazes ficaram mais expansivos. Aguiar confessou então, que a causa do seu mal-estar não era a tal noite mal passada, nem tampouco a suposta enxaqueca, mas o diabinho de uma prima que ele tinha, um diabinho de quinze anos, que ele adorava, sem conseguir arrancar-lhe um ar de sua graça.

- Não te corresponde?

- Qual! parece até embirrar comigo. Talvez me confunda com os tipos que a cobiçam por causa do dote...

- Ah! é rica!

- Tem cento e tantos contos... Ah! mas tu sabes perfeitamente que eu, só por parte de minha mãe, possuo mais do que isso, sem contar com a morte de meu avô.

Teobaldo soltou um suspiro.

- Já vês... disse o outro, que não é pelo dote!

- Está claro!

- Pois, apesar disso, não consigo agradá-la. Tenho empregado todos os meios; não penso rim outra coisa; persigo-a por toda a parte, e a malvadinha cada vez mais cruel!

- Decerto; toda mulher foge enquanto a perseguem. Deixa-a. de mão; finge indiferença, e verás que ela se chega.

- Homem. e dizes bem. vou fazer-me indiferente.

Mas acrescentou logo depois:

- Qual! É impossível! Não tenho forcas para isso!... Será bastante vê-la, encontrá-la na rua, vara que eu perca de todo a cabeça e não saiba mais regular os meus atos. Fico louco!

- Oh! mas então a coisa é séria!

- Que queres tu? Adoro-a!

- Ela é bonita?

- Encantadora! Queres ver o retrato?

E, tirando do bolso uma fotografia.

- Olha.

- É linda. com efeito. Pois. filho, se estás tão apaixonado, é insistir, porque a água mole em pedra dura...

- Sim. mas já me vão faltando as esperanças de conseguir qualquer coisa... ri. sabes? Ela depois de amanhã faz anos; hesito ainda no presente que lhe devo dar...

- Não lhe dês nada.

- Impossível. Há uma festa em casa da família. O pai, o comendador Rodrigues que protege as minhas pretensões sobre a filha. convidou-me.

- Ah! O pai protege-te?

- Pai, parentes, amigos, todos me protegem, menos ela.

- É o diabo! Estás mal!

- Contudo, ainda não desanimei de todo e vou experimentar uma idéia, que tive agora, uma idéia para o dia de seus anos.

- Qual é?

- Uma idéia magnifica; só tu, porém, me podes ajudar.

- Eu? De que modo?

- Vou levar-lhe de presente uma poesia... Que achas?

É um presente econômico.

- Mas eu não sei fazer versos; tu és quem os há de arranjar.

- Não seja essa a dificuldade. Podes contar com eles.

- Não. Há de ser já; ao contrário sei que não os pilho.

- Agora?

- Sim. Olha; ali tens uma mesa com papel e tinta; toma a fotografia para te inspirares, e mãos à obra!

- Ora, filho, mas isto é uma espiga.

- Anda! Escreve!

Teobaldo ainda recalcitrou, mas o outro insistiu por tal forma, que ele afinal não teve remédio senão fazer-lhe a vontade.

E, colocando o retrato defronte de si, compôs ao correr da pena meia dúzia de estrofes líricas, repassadas de arrebatamento amoroso; depois limou-as pelo melhor que pode e leu-as ao amigo.

- Que tal achas?

- Soberbo! com isto creio que avanço uma légua nas minhas pretensões.

E guardando os versos na algibeira:

- É verdade! Tu bem podias vir comigo à festa; é domingo. Hás de gostar.

- Pode ser... respondeu o outro

- Não; quero que venha com certeza; desejo apresentar-te a meu tio.

Teobaldo, havia muitos meses, não tinha ocasião de visitar famílias o que com a sua educação, fazia-lhe certa falta; não lhe foi por conseguinte de mau efeito o convite do amigo, e, logo que este pôs à disposição dele algum dinheiro, ficou entre os dois combinado que jantariam juntos no domingo em casa do Aguiar e seguiriam depois para o baile do comendador Rodrigues.

Depois foram daí ao teatro e à volta deste cearam no Mangini em companhia de uma francesa que se lhe agregara durante o espetáculo.

Eram duas horas da madrugada quando Teobaldo, um pouco eletrizado pelos seus vinhos italianos, recolhia-se afinal a casa, pé ante pé, para não acordar o Coruja. Mas, ao entrar no quarto, ficou surpreendido; alguém ressonava na sua cama.

Acendeu a vela; era Ernestina, que dormia o sono solto.

- Ora esta! pensou ele, tomando uma carta que acabava de descobrir sobre a mesa, e, ato contínuo, soprou o vela e tornou a sair, muito enfiado.

- Diabo! exclamou, fechando sobre si a porta da rua. Pois nem com a minha pobre cama posso contar?

Neste instante, Ernestina, que havia acordado, aparecia à janela, estremunhada e aflita.

- Que! pois não ficas em casa?! perguntou ela.

- Decerto! respondeu de baixo o moço com raiva.

- És um homem impossível!

E ouviram-se soluços.

- Impossível é a senhora! gritou ele. Creio que não podia lhe falar com mais franqueza do que falei! Fez mal em ficar!

- Sobe! pediu ela com a voz chorosa.

- Não me aborreça, replicou Teobaldo, afastando-se furioso.

E pensar, considerava o fugitivo pela rua, que não fui ter hoje com Leonília só para gozar uma noite completamente sossegada...

E, depois de alguns passos, enquanto seu pensamento trabalhava, deteve-se no meio da rua, batendo freneticamente com a bengala no chão.

- Mas isto não tem jeito! No fim de contas é uma violência que me incomoda, que me irrita, que me põe neste estado! Quero dormir, quero repousar e nem isso me permitem! Antes ser escravo! antes ser um cão, que esses ao menos descansam!

Então foi que se lembrou da carta encontrada sobre a mesa; aproximou-se de um lampião e abriu-a.

Reconheceu logo pelo sobrescrito que era de Leonília.

Teobaldo - Confesso-te que estou deveras surpresa com o teu procedimento; vejo que me enganei - não és um cavalheiro. Por tua causa enterrei--me neste arrabalde, transformei toda « minha vida e tu, logo nos primeiros dias, foges de mim como se eu fosse a peste em pessoa; ora, hás de...

Teobaldo não leu o resto; amarrotou a folha de papel entre os dedos e lançou-a fora com arremesso.

- Vão todas para o diabo! disse, e foi continuando a caminhar até à porta do hotel Paris. Bateu e pediu um quarto.

Só depois de recolhido se lembrou de que tinha consigo pouco dinheiro e, pois, não devia gastá-lo em coisas supérfluas.

- Amanhã... amanhã darei um jeito a tudo isto!... deliberou entre os lençóis. Vou falar com franqueza ao Coruja e pedir-lhe que me ajude a fugir desta crítica situação em que me acho... Ele é muito capaz de descobrir um meio, e se não descobrir, arranjarei o negócio por minha conta... Aqueles demônios das mulheres...