sábado, 26 de setembro de 2009

Leitura 41

E daí principiaram todos a notar a sua ausência nos lugares em que ele era dantes mais freqüente; afinal já nunca o encontravam em parte alguma onde houvesse um pouco de alegria ou um pouco de prazer; agora o riso lhe fazia mal, ao passo que ao cair da tarde viam no sempre nos arrabaldes mais solitários, passeando a pé, vagarosamente; as mãos cruzadas atrás, a cabeça baixa, o ar todo preocupado como de um mísero pai de família que vai sentindo faltar-lhe a vida e treme defronte da morte, não por si, mas pelos entes que lhe são caros e que aí ficam no mundo abandonados.

Todavia era justamente o inverso o que se dava com Teobaldo; sucumbia à falta da família; sucumbia à falta de afeições sinceras e à falta de carinhos legítimos.

E quanto mais, com o correr do tempo, a falta de tudo isto lhe apertava o coração e lhe ensombrava os dias, tanto mais insuportáveis se lhe faziam as tredas amizades da rua, as falsas relações políticas, os frívolos protestos dos seus admiradores e o palavreado venal daqueles que mendigavam a sua proteção.

XXVI

Foi em tal estado que ele, atravessando certa noite uma das ruas menos freqüentadas da cidade velha, sentiu, da rótula de uma casinha de porta e janela, baterem-lhe no ombro.

- Abrigue-se da chuva, disse uma voz de mulher.

Teobaldo afastou-se, mas não tão depressa que não chegasse a reconhecer quem o provocara.

Era Leonília.

Uma rápida nuvem de desgosto tingiu-lhe logo o coração.

Parou. Ela não o tinha reconhecido, graças à circunstância de que Teobaldo levava o sobretudo com a gola levantada e o guarda-chuva aberto. Sua primeira intenção foi dar-lhe dinheiro e seguir caminho sem lhe falar; mas tomado de súbito por uma outra idéia, olhou em torno de si, fechou o guarda-chuva e transpôs a porta que Leonília havia já aberto.

Ah! Que terrível impressão experimentou S. Exa. ao achar-se em meio daquela pequena sala, sistematicamente preparada para o vício barato!

Que doloroso efeito lhe causaram aquelas pobres cortinas de renda, aquelas cadeiras encapotadas de musselina branca, para fingir mobília de luxo; aqueles dois consolos cobertos de crochê e guarnecidos por um par de bonecos de gesso colorido; aquela mesinha de centro, onde havia um candeeiro de querosene e ao lado deste um maço de cigarros Birds's eye!

Teobaldo, sem tirar o chapéu, considerava entristecido tudo isto, enquanto a dona da casa passava para uma alcova que havia ao lado da sala, deixando correr atrás de si uma cortina de lá vermelha.

- Que transformação, pensava. ele. - Que transformação.

E, a despeito de tudo, sua memória o transpunha ao passado reconstruindo os extintos aposentos da cortesã, outrora tão luxuosos, e nos quais ele tantas vezes viu palpitar de amor nos seus braços aquela mesma mulher, quando era moça.

Então, a beleza de Leonília, a mocidade de ambos, o luxo que os cercava, punham-lhe no amor um lânguido reflexo de romantismo, um picante sabor orgíaco, um quer que seja, que agradava à vaidade dele e satisfazia em segredo ao temperamento dos dois.

Então, atiravam-se um contra o outro, sem se envergonharem da sua loucura; bebiam pela mesma taça o vinho de sua mocidade, e os beijos estalavam entre seus lábios como o estribilho de uma canção de amor.

Oh! Mas a prostituição é contristadora, ainda mais quando precisa trocar a túnica de seda pelos andrajos da mísera; a prostituição é pavorosa quando não gira sobre diamantes e não tem a seu serviço a beleza e a mocidade.

- E quanto ela era bela dantes! Que partido não sabia tirar de todos os seus tesouros! Com que graça não se embriagava, mostrando o colo e deixando-se cair em gargalhadas nos braços dos seus amantes! E agora... Uma velhusca, muito gorda, o rosto coberto de rugas mal disfarçadas pelo alvaiade, os olhos cansados, os olhos descaídos, os dentes sem brilho, o cabelo reles, o hálito mau. Que diferença!

Quando Leonília tomou da alcova e viu Teobaldo já com a cabeça desafrontada, soltou um grito e voltou-se para o lado contrário, escondendo o rosto.

- Entrei, porque a reconheci... disse ele, tirando dinheiro do bolso. Tome, e se quiser deixar esta vida, eu lhe darei o necessário para não morrer de fome.

Ela soluçava, sem descobrir os olhos.

- Então? perguntou o ministro ao fim de algum silêncio, eu não vim aqui para a fazer chorar! Vamos, recolha este dinheiro e creia que não me esquecerei de sua pessoa. Adeus.

- Não, não! disse afinal a cortesã, não preciso; prefiro nunca mais ter noticias suas! O senhor fez mal em entrar aqui! Devia fazer que não me reconhecia e ir seguindo o seu caminho! Vá, vá-se embora e nunca mais se lembre de mim!

- Se entrei, foi porque a minha consciência me obrigou a entrar. Cumpro um dever.

- Não! É muito tarde para isso. Vá-se embora! Deixe-me!

- Desejo ser-lhe útil naquilo que puder.

- Fez mal em entrar; eu não lhe merecia ainda mais esta maldade! Basta o muito que já sofri por sua causa, quando este corpo valia alguma coisa! O que o senhor acaba de fazer é uma profanação! Para que mexer nas sepulturas? Por que não me deixou apodrecer sossegada neste meu aviltamento, nesta antecâmara do hospital? O senhor foi o homem que eu mais amei e também o que eu mais odiei; agora já não, lhe tenho nenhuma dessas coisas; estamos quites; já não lhe devo nada, nem o senhor a mim; contudo preferia nunca mais lhe por a vista em cima! Vá embora! Vá.

- Mas, recolha ao menos esse dinheiro.

- Não, não quero; protestei que de suas mãos nunca mais aceitaria o menor obséquio!

- Lembre-se de que precisa.

- Deixe-me em paz! Não vê que a sua presença me faz mal? Não vê que fico neste estado?

E Leonília soluçava, não com a mesma graça dos outros tempos, mas com uma sinceridade que seria capaz de comover o diabo.

- Mas, filha, aceite, é um favor que me faz! insistia o conselheiro.

- De suas mãos - nada! O senhor é um homem mau! É um egoísta, é um fátuo! Prefiro morrer de fome, prefiro ir acabar em um hospital, mas deixe-me, deixe-me, por amor de Deus!

XXVII

Teobaldo abandonou a casa de Leonília e, depois de vagar ainda pelas ruas, recolheu-se mais aborrecido do que nunca.

Uma indomável necessidade de companhia, mas de companhia amiga e consoladora, o assoberbava a ponto de irritá-lo.

Foi com o coração desconfortado e o espírito oprimido que ele atravessou as salas desertas de sua casa. Dir-se-ia que ali não morava viva alma; um silêncio quase completo parecia imobilizar o próprio ar que se respirava; os quadros, as estatuetas e as faianças nunca para ele haviam sido tão mudos, tão frios e tão imperturbáveis.

Meteu-se no gabinete, disposto a trabalhar qualquer coisa, para ver se conseguia distrair-se; mas aquela solidão tirava-lhe o gosto para tudo; aquela solidão o aterrava, porque o desgraçado já não podia, como dantes, fazer companhia a si mesmo; já não podia entreter--se a pensar em si horas e horas esquecidas, e também já não tinha ilusões, porque o principal objeto de suas ilusões era ele próprio, e ele estava desiludido a seu respeito.

Seu ideal era como um espelho, onde só a sua imagem se refletia; quebrado esse espelho, ele não tinha coragem de encarar os pedaços, porque em cada um via ainda, e só, a sua figura, mas tão reduzida e tão mesquinha que, em vez de lhe causar orgulho como outrora, causava-lhe agora terríveis dissabores.

Como a vida é horrível! pensou ele; como tudo que ambicionamos nada vale, uma vez alcançado! Como eu me sinto farto e desprendido de tudo aquilo que até hoje me interessava e me comprazia! Afinal, do que serve existir? Para que viver? Que lucramos em atravessar estes longos anos que atravessei? Onde estão os meus gozos? as minhas regalias? Que espero fazer amanhã melhor do que fiz hoje? Que há em torno de mim que possa me dar um instante de ventura? Ah! Se eu não tivera sido tão mau! Tão mau para mim, pensando que o era para os outros!.

E ouviu bater três horas.

- Três horas da madrugada! E não trabalhei, nem li, nem fiz coisa alguma. e nem posso dormir, e tenho de suportar a mim mesmo, sabe Deus até quando! E sinto-me doente! A febre escalda-me o sangue!

Levantou-se do lugar onde estava e, cambaleando, fez algumas voltas pelo quarto.

- Oh! Este isolamento me aterra!

Pensou então na mulher: - Ela nessa ocasião dormia, com certeza... Naquele momento daria tudo para, a ter junto de si.

Mas ele a queria, não como ela era ultimamente, porém, como dantes, quando o amava, quando vinha recebê-lo à porta da rua e não o abandonava senão quando ele tornava a sair de casa.

Assim é que a queria - companheira, amiga, unida e inseparável.

- Ah! Se eu não tivesse me incompatibilizado com ela!... Se pudesse ir buscá-la, traze-la aqui para o meu gabinete, desfrutar a sua companhia, gozar o seu coração!... Oh! mais tudo isto já não pode ser! Está tudo perdido! Ela continua a ver em mim um vaidoso, um fátuo, um homem ainda menor que o mais vulgar! Nunca mais poderei ser para Branca o que fui, o que ela me julgou na cegueira do seu primeiro amor!

E Teobaldo deixou-se cair de novo na cadeira, com o rosto escondido entre as mãos, a respiração convulsa, os olhos ardendo como se fossem duas chagas.

- Se eu não tivesse sido para ela o que fui, talvez, quem sabe? tivéssemos agora um filhinho?

Esta idéia lhe trouxe uma golfada de soluços.

E, no seu desespero, ele via esse filho imaginário; esse ente que nunca existira e de quem ele tinha saudades, porque entre os vivos não encontrava um coração que o recebesse.

Chorou muito ainda, depois ergueu-se e saiu do gabinete.

Atravessou como um sonâmbulo os aposentos da casa, ate chegar ao corredor por onde se ia ao quarto de Branca.

A porta estava fechada.

- Se ela soubesse quanto eu sofro!... Ela, que é tão boa, tão compassiva e tão casta, talvez, tivesse compaixão de mim!...

Mas não se animou a bater.

- Havia tanto tempo que não se falavam senão em público!... Ele tantas vezes desdenhara dos seus carinhos; tantas vezes fingira não compreender as lágrimas dela!...

Abandonou de novo o corredor, na intenção firme de recolher-se à cama.

Chamou o criado, pediu conhaque, bebeu, despiu-se e deitou-se. Não conseguiu dormir. Tocou de novo a campainha.

- Meu amo chamou?

- Sim. Vê roupa. Torno a sair.

- Mas V. Exa. parece incomodado; creio que faria melhor em...

- Vê roupa! Não ouves?!

E, quando o criado ia de novo a sair, depois de cumprida aquela ordem:

- 0lha!

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