quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Leitura 18

A Inesinha está só esperando a idade para casar.... diziam eles em ar de chacota, para mexer com o gênio da velha.

E conseguiam, porque D. Margarida ficava furiosa; mas não contra aquele e sim contra o pobre André.

Este, todavia, com a regularidade de um cronometro, não faltava à casa da noiva, às horas do costume. Apresentava-se lá com a mesmíssima cara do primeiro dia, sempre muito sério, muito respeitoso e muito dedicado; Inez, também inalterável, vinha assentar-se ao lado dele, enquanto a velha Se postava defronte dos dois. E assim conversavam das sete às dez horas todos os domingos e das sete às nove nas terças, quintas e sábados.

E lá se iam cinco anos em que isto se verificava com a mesma pontualidade. André era já conhecido no quarteirão e, quando ele surgia na esquina da rua, resmungavam os vizinhos de D. Margarida:

- Ali vem o noivo empedrado!

Houve espanto geral em vê-lo passar uma sexta-feira fora das horas costumeiras e muito mais apressado e mais preocupado que das outras vezes.

Ia pedir à velha um obséquio bastante melindroso: e, que nesse dia, pela volta das onze, Teobaldo lhe surgira no colégio, com um ar levado dos diabos, o chapéu à ré, o rosto em fogo, para lhe dizer:

- Sabes? Fiz o pedido ao velho!

- Já? Acho que foste precipitado!

- Pois se ele quer enterrar a filha em Paquetá, até que ela se resolva a casar com o primo!

- Mas então?

- Negou-ma!

- Negou-ta?

- Abertamente! Chegou até a contar-me uma porção de histórias, que me fizeram subir o sangue à cabeça!

- Que disse ele?

- Ora! Que eu não estava no caso de fazer a felicidade da filha; que eu era um estróina, um doido; que eu tinha mais amantes do que dentes na boca (foi a sua frase) e que eu, para prova de que não gostava do trabalho, nunca tomara a sério o emprego que ele me dera em sua casa; e que eu entrava sempre mais tarde que os outros; que eu era isto e que era aquilo, e que, ainda mesmo que eu não fosse quem sou, ele não podia me dar a filha, porque já estava comprometido com outro...

- O Aguiar...

- Já se vê!

- E tu, que lhe respondeste.

- Eu? Eu olhei muito sério para ele e disse-lhe: Você sempre é um ginja muito idiota! O velho ficou mais vermelho que o lacre, tremeu da cabeça aos pés, cresceu meio palmo e não pode dar uma palavra, porque estava completamente gago. Então agarrei no chapéu, enterrei-o na cabeça e bati para Botafogo!

- Para a casa dele? Ah! isto se passou aqui em baixo...

- Sim. Entrei na chácara e fui enfiando até à escadaria do fundo. O acaso protegeu-me; Branca bispou-me da janela e veio logo ter comigo a um sinal que lhe fiz. "Sabes? disse-lhe, pedi-te ao comendador; ele declarou que por coisa alguma consentirá que eu seja teu marido e jurou que hás de casar com o Aguiar!" Ela pôs-se a chorar. "Tu me amas?" perguntei-lhe. Ela respondeu que me adorava e que estava disposta a tudo afrontar por minha causa. "Pois então, repliquei, se queres ser minha esposa, só há um meio, é fugirmos! Estás disposta a isso?" Ela disse que sim e ficou decidido que hoje mesmo às dez horas da noite eu a iria buscar. Por conseguinte, tem paciência, preciso de ti, pede licença ao diretor e saiamos, que não há tempo a perder.

- Estou às tuas ordens...

- Tens dinheiro?

- Um pouquinho, mas em casa.

- Ora!

- Podemos dar um pulo até lá! Espera um instante por mim; não me demoro.

Durante o caminho, Teobaldo contou mais minuciosamente a sua conversa com Branca e pintou com exagero de cores a opressão que lhe fazia o pai, para a constranger a casar com o bisbórria do primo.

Chegados à casa, mal Teobaldo embolsou o que havia em dinheiro, disse ao amigo:

- Bem! Então, antes de mais nada, enquanto eu vou falar ao cônego Evaristo e depois ver se arranjo mais algum cobre, vai ter à casa de tua noiva e pede à velha que consinta depositarmos lá a menina. Creio que ela não se oporá a isto; que achas!

- Não sei, vou ver..

- Pois então vai quanto antes e volta aqui imediatamente. E quase meio-dia, às duas horas podemos estar juntos; iremos então tratar do carro e do resto; depois jantaremos no hotel e às nove partiremos para Botafogo. A ocasião não pode ser mais favorável ao rapto; a noite há de ser escura; a francesa está doente e de cama e, quando chegarmos, é natural que o comendador já se ache no segundo sono e os criados no terceiro!

- Eu serei o cocheiro do carro, disse Coruja; sabes que tenho boa mão de rédea.

- Bem lembrado! Escusa de metermos estranhos no negócio. E, olha, para melhor disfarce, porás a libré do Caetano e levarás o seu chapéu de feltro.

- A libré do Caetano há de chegar-me até aos pés...

- Melhor, ninguém te reconhecerá.

- Isso é verdade...

- Sabino?

- Meu senhor.

- Preciso hoje de você. Às quatro e meia no hotel. Ouviu?

- Já ouvi, sim senhor.

- Olha! Traze-me uma garrafa daquelas que estão no guarda-louça.

Era um presente de Moscatel d'Asti espumoso, que lhe fizera Leonília no dia dos anos dele.

- Vais beber agora? perguntou o Coruja.

- Vou; sinto-me sufocado! Preciso de um estimulante. Conserva tu em perfeito juízo a tua cabeça e deixa-me beber à vontade.

Encheu duas taças e, erguendo uma delas, disse ao amigo:

- Ao novo horizonte que se rasga defronte de nossos olhos! Ao amor e à fortuna!

Coruja levou a sua taça aos lábios, bebericou uma gota de vinho e afastou-se logo para ir à casa de D. Margarida; enquanto o outro, esticando-se melhor na cadeira em que estava e soprando com volúpia o fumo do seu charuto, murmurava de si para si:

- Amanhã a estas horas tenho à minha disposição uma mulher encantadora e um dote de cem contos de réis! Ah! geração de imbecis, agora é que vais saber quem é Teobaldo Henrique de Albuquerque!

XXII

Às nove horas da noite Teobaldo partira para Botafogo dentro de um cupê, em cuja boléia o Coruja e mais o Sabino empertigavam-se denodadamente como se foram legítimos cocheiros.

Era para ver o grave professor enfronhado naquela libré já russa, de botões enverdecidos de azinhavre, e todo austero, inalterável, possuído da mesma gravidade com que se assentava ao lado da noiva ou recolhia na aula as lições dos seus rapazes.

Não se lhe desfranzira o sobrolho, nem lhe fugira dos lábios a triste rispidez favorita, como também os seus pequeninos olhos mal abertos conservavam aquela dura expressão antipática e sem graça, que a todos desagradava e repelia.

Pelas aproximações da casa do comendador o carro seguiu mais lentamente e abordou-a pelos fundos, sem se lhe ouvir o rodar, porque a rua era de areia.

A certa altura, Teobaldo segredou uma palavra ao amigo, saltou em terra e dirigiu-se para o portão traseiro da chácara; aí escondeu-se atrás de uma árvore que havia e assoviou três vezes. Só no fim de alguns minutos um leve rumor de saias fê-lo compreender que alguém se aproximava.

- Teobaldo... disse uma voz medrosa e tímida.

- Estás pronta?

E ele viu desenhar-se na escadaria de pedra, frouxamente iluminado pelas estrelas, o gracioso vulto de Branca.

Ela desceu trêmula e confusa, apoiando-se ao corrimão engrinaldado de verdura, a olhar espavorida para todos os lados, até chegar embaixo.

- Vem, disse Teobaldo a meia voz.

- Tenho medo... balbuciou a menina, encostando-se ao pilar da escada, sem ânimo de dar um passo em frente.

O rapaz abriu cautelosamente o portão e foi ter com ela.

- Não tenhas receio, minha Branca, segredou-lhe, passando-lhe um braço na cintura. - Lembra-te de que, se não aproveitarmos esta ocasião, nunca mais seremos um do outro. Dei já todas as providencias: uma família espera por ti e ao raiar do dia estaremos casados. Vem! Nada de hesitações, vem, antes que nos surpreendam aqui.

- Vê como estou gelada... balbuciou ela, pousando a sua mãozinha fria sobre o rosto do namorado. O coração parece que me quer saltar de dentro do peito... Oh! não pensei que me custaria tanto a dar este passo...

Teobaldo puxou-a brandamente até à rua e, com um sinal, fez aproximar-se o carro, para onde ele a levou nos braços.

- Deus me proteja!... suspirou Branca, deixando--se cair sobre as almofadas, como se perdera os sentidos.

- Toca! ordenou o raptor ao Coruja.

O carro disparou. Então a menina deixou pender a cabeça sobre o colo do amante e abriu a soluçar.

* * *

D. Margarida e a filha esperavam por eles.

Não foi, porém, sem dificuldade que o Coruja logrou capacitar a velha de que não devia fugir a semelhante obséquio, e é de crer que ela cedesse mais por espírito de curiosidade do que pelo simples gosto de servir ao futuro genro: aquilo, afinal, era um escândalo, e a mãe de Inez dava o cavaquinho pelos escândalos.

Branca chegou lá às dez e meia da noite, e D. Margarida, ao dar com o Coruja muito sério e disfarçado em cocheiro, exclamou benzendo-se

- Credo, seu Miranda! Que trajos são esses, homem de Deus?

Teobaldo despediu o carro, fez servir uma ceia que mandara trazer do hotel e ordenou ao Sabino que tornasse a Botafogo e ficasse até pela madrugada a rondar a casa do comendador, para ver se haveria alguma novidade.

Puseram-se todos à mesa e, a despeito da crescente aflição da foragida, riram e conversaram, sem cuidar nas horas que fugiam, porque estavam mais que dispostos a passar a noite inteira na palestra e na bisca de sete.

- Vê!... disse Margarida, dirigindo-se a André e apontando para Branca e Teobaldo, que alheados conversavam juntos, quando a gente quer as coisas deveras faz como aqueles...

O Coruja remexeu-se ao lado de Inez, e a velha acrescentou:

- E note-se que estes para casar topavam outras dificuldades que já o senhor não encontra para casar com minha filha!...

- O meu caso é muito diferente... resmungou por fim o Coruja - mas muito diferente... Quanto a mim, não se trata de vencer oposições de família; trata-se é de obter os meios necessários para que a senhora e sua filha não venham a sofrer dificuldades depois do meu casamento...

Um comentário:

  1. QUERIDO ALUNO, AO FAZER O SEU COMENTÁRIO NÃO DEIXE DE COLOCAR NOME, NÚMERO E SÉRIE

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