sábado, 5 de setembro de 2009

Leitura 20

Consistia o seu sistema no seguinte: desde que a inesperada morte do comendador lhe fez ver quão magra era a fortuna de Branca, o seu primeiro cuidado foi esconder de todos a verdade e manter a ilusão em que se achavam a respeito dos bens do morto; o que não podia ser muito difícil nas circunstâncias especiais em que falecera o velho. Então, para melhor cegar ao público, Teobaldo tomou da metade do que lhe trouxe a mulher e dedicou-a exclusivamente ao luxo, reservando a outra metade para o comércio.

- As aparências são tudo! considerava ele, ainda dominado pelas teorias paternas. Julguem-me rico e hão de ver se em breve o não serei de fato!

E, durante todo o seu primeiro ano de casado, fez prodígios de especulação comercial só com a parte do dinheiro que escapara à ostentação e mais a pequena prática adquirida ao lado do comendador.

Apenas Branca e o Coruja sabiam destes particulares, porque até aos próprios sócios sobreviventes ao velho Aguiar conseguiu o mágico iludir, fazendo-lhes supor que, além do capital com que jogava na praça, dispunha ele ainda, como fundo de reserva, de um dote imaginário que pertencia à mulher.

O caso é que o pouco parecia muito e, como no comércio o crédito é dinheiro, não eram de todo infundadas as esperanças que ele depositava no seu sistema de vida.

II

Teobaldo, ao instalar-se mais a esposa em Botafogo, convidou logo o Coruja a ir morar com eles.

- Ora!... opôs vacilante o amigo.

- Ora, que?

- Receio incomodá-los; vocês tem lá os seus hábitos de grandeza... estão acostumados a certo modo de vida, a certo luxo, entre o qual o meu tipo esquisito havia de ser uma nota dissonante...

- Não admito que te separes de mim! foi a única resposta de Teobaldo.

Mas, como o outro ainda recalcitrasse, ele acrescentou:

- Também era só o que faltava: era que tu me abandonasses pelo simples fato de me haver eu casado. Tinha graça! Enquanto me vi atrapalhado e sem meios de viver, éramos companheiros de casa e mesa; agora queres desertar. Não deixo!

- Mas...

- Não aceito razões. Hás de ir morar comigo! Coruja cedeu um tanto contrariado, porque previa não se ajeitar àqueles requintes de luxo. O que para Teobaldo representava o encanto e a delícia de uma bela existência, para ele seria nada menos do que um martírio de todos os instantes.

Cedeu, mas com a condição de que iria ocupar um sótão que havia nos fundos da casa.

- O sótão?! exclamou Teobaldo. Ora essa! Pois eu consentiria lá que fosses para o pior lugar da casa, havendo aí outras acomodações tão boas e que de nada me servem?

- Não sei; a ter de ir, só irei para o sótão, e desde já te previno de que não me separo dos meus cacaréus.

- Pois faze o que entenderes, contanto que fiques em minha companhia.

Não era sem razão que o Coruja opunha aquela resistência ao convite do seu querido Teobaldo. Desejava estar junto deste, oh! se desejava! Desejava vê-lo e falar-lhe todos os dias, porque o idolatrava, porque no seu espírito inalterável e escravo dos hábitos Teobaldo se constituíra em ídolo; Teobaldo fora a sua primeira afeição, o seu primeiro amigo, o seu primeiro protetor; André habituara-se a vê-lo crescer no seu reconhecimento e dentro da sua estima, como o único e legítimo senhor; mas também não queria abrir, sem mais nem menos, com o programa de vida que ele próprio traçara, jurando a si mesmo cumpri-lo rigorosamente. porque assim entendia o cumprimento do dever.

Havia coisa de dois anos resolvera o Coruja ir pondo de parte as economias que pudesse, para ver se lograva realizar afinal o seu casamento, cuja transferencia de ano para ano já o apoquentava deveras.

E com efeito, depois da morte de Ernestina, conseguiu ajuntar aqueles oitocentos mil réis que serviram para abrandar as iras de Leonília; Teobaldo, em casando, pagou-os logo; mas ainda não foi desta vez que o pobre Coruja viu efetuado o seu desiderato, porque uma nova contrariedade se lhe pôs de permeio.

Foi a seguinte:

Uma noite entrava às horas do costume em casa da noiva, quando esta lhe apareceu muito triste, dizendo entre suspiros que a mãe, desde pela manhã, se queixara de dores na cabeça e fora piorando com o correr do dia, a ponto de ter de largar o serviço e meter-se na cama, já ardendo em febre.

André passou logo ao quarto da velha e encontrou-a em uma grande sonolência e quase sem dar acordo de si. Observou-a em silencio por alguns segundos, depois tomou de novo o chapéu e foi buscar um médico seu conhecido.

O doutor declarou que a velha tinha varíola de muito mau caráter e que precisava de um bom tratamento.

Daí a pouco toda a vizinhança de Margarida sabia já do fato e começava a alvoroçar-se. Só Inez não se preocupou com ele.

- Para que estar com medos?.. . disse entre dois muxoxos. Se eu tiver de pegar as bexigas, hei de pegar ainda que fuja para o inferno!

E com a sua filosofia de fatalista, afrontou impavidamente a moléstia da mãe.

No dia seguinte Coruja alugou um enfermeiro, e o médico principiou a visitar a doente com toda a regularidade.

As bexigas foram das piores, pele de lixa, o tratamento muito dispendioso e demorado. Durante a moléstia nada faltou à velha; mas, quando esta se pôs em convalescença e foi para a Tijuca à procura de novos ares em casa de uma amiga, André não tinha mais um só vintém das suas economias.

- Sim, disse ele, para se consolar, gastei tudo é verdade; mas também agora estou desembaraçado de certas despesas e posso mais facilmente ajuntar algum pecúlio.

E, nos quatro meses que se seguiram à enfermidade da velha, entregou-se ele ao trabalho com tal fúria, que, ao entrar no quinto, sua saúde começou de alterar-se consideravelmente.

Apareceram-lhe então terríveis dores na espinha e na caixa do peito; veio-lhe uma tosse seca e constante; e à noite, quando o tempo ia refrescando, sentia ameaços de febre e uma prostração aborrecida que lhe tirava o gosto para tudo.

- Ó Coruja! dizia-lhe o amigo, tu precisas descansar! Dessa forma dás cabo de ti, homem! Olha! Pede uma licença ao colégio e deixa-te ficar aí em casa por algum tempo. Que diabo, não te faltará nada!

Bastava, porém, ao desgraçado lembrar-se do seu compromisso com Inez para não lhe ser possível ficar tranqüilo. Além disso, D. Margarida, cuja força de gênio aumentara com a moléstia, cercava-o já com frases desta ordem:

- Também você não ata, nem desata, seu Miranda! No fim de contas vejo que não tratei com um homem sério! Ora pois!

A própria Inez, até aí tão passiva tinha agora de vez em quando as suas rabugens e acompanhava já o serrazinar da velha.

Coruja enfraqueceu afinal; principiou a trabalhar menos e a faltar constantemente às aulas.

- Recolhe-te por uma vez! gritava-lhe Teobaldo. Mas o teimoso fazia ouvido de mercador e lá ia para a frente, ganhando os magros vencimentos de professor e procurando sempre por de parte alguma coisa para o casamento.

- Querem ver que ele agora dá para morrer!... grunhia a velha cada vez mais enfurecida. Se em bom não conseguiu casar, quanto mais doente! Ah! este homem foi uma verdadeira praga que nos caiu em casa!

- E foi mesmo!... confirmava já a moleirona da filha, que sentia ir-se encaminhando para a velhice a passos de granadeiro: foi mesmo uma praga!

E, quando ele lhes aparecia muito pálido, a tossicar dentro do cache-nez, saltavam-lhe ambas em cima:

- Então, então, seu Miranda! Acha que ainda é pouco o debique?

- Tenham um pouco de paciência! um pouquinho mais de paciência. Agora estou fraco; juro, porém, que em breve levantarei a cabeça e tudo se arranjará. Descansem!

- Ora! Quem se fiar no que você diz não tem o que fazer! Diabo do empulhador!

Para as tranqüilizar um pouco, enviava-lhes presentes e dava-lhes o dinheiro que podia.

E sempre bom, escondendo de todos as suas privações e os seus desgostos, procurando ocupar no mundo o menor espaço que podia, e sempre superior aos outros, sempre além da esfera de seus semelhantes, atravessava a existência, caminhava por entre os homens sem se misturar com eles, que nem um pássaro que vai voando pelo céu e apenas percorre a terra com a sua sombra.

III

Fazia dolorosa impressão ver sair todas as manhãs, pelos fundos da chácara de Teobaldo, aquele vulto sombrio todo envolvido em um velho sobretudo, a tossir esfalfado de trabalho e sem querer incomodar com a sua tosse os criados que ainda dormiam.

A nova existência do amigo como que o fizera ainda mais triste e mais só. Dantes tinham os dois sobeja ocasião para estar juntos, para se falarem, para trocarem entre si as suas confidencias; e agora mal se viam uma vez ou outra, casualmente, porque André insistia no escrúpulo de desfear o radiante aspecto daquelas salas, carregando para lá com o seu vulto desalinhado e feio. À noite, quando apareciam visitas, o que era muito freqüente, não havia meio de arrancá-lo do sótão.

Demais, para que iludir-se? Teobaldo não fazia grande empenho em apresentá-lo aos seus amigos, chegava até em presença destes a tratá-lo com uma certa frieza. - interesse em obrigá-lo a aceitar um canto de sua casa, não passava de um dos muitos rompantes de generosidade, que ele às vezes tinha quase que inconscientemente, e dos quais se arrependia logo sem nunca se queixar de si, mas do seu obsequiado.

Isto não quer dizer que Teobaldo agora estimava menos o Coruja; ao contrário - jamais intimamente o colocou tão alto no seu conceito; apenas, como homem vaidoso, não queria incorrer no desagrado de seus sequazes impondo-lhes um; tipão daquela ordem.

A borboleta, desde que lhe saem as asas, não gosta de ir ter com as antigas companheiras que se arrastam no chão.

- Não é dele a culpa... considerava André, sempre disposto a perdoar. - A borboleta precisa de sol, precisa de flores... Quem tem asas - voa; quem as não tem fica por terra e deve julgar-se muito feliz em não ser logo esmagado por um pé.

E, a contragosto, fazia-se mais e mais retirado e macambúzio.

Ao lado de Branca então chegara o seu acanhamento a causar dó; quando a formosa senhora lhe dirigia a palavra, ele parecia ficar ainda mais selvagem, mais desajeitado, atarantava-se, fazia-se estúpido, não encontrava posição defronte daquele primor de beleza, e conseguia apenas uivar algumas vozes confusas e quase sem nexo.

3 comentários:

  1. Querido aluno, ao fazer o seu comentário, não deixe de colocar nome, número e série.

    ResponderExcluir
  2. O André é uma pessoa que é "uma em um milhão" num vi bondade igual à dele. Ele só vê o lado bom das pessoas. Teobaldo é muito orgulhoso de ter um amigo feito ele.

    Nome: Narciso Faustino Mendes Nº 25 6ªC

    ResponderExcluir