Ele a porfiar e Branca a fingir que não o compreendia, desviando-se das garras do sedutor com a imperturbável calma de quem tem toda a confiança em si. Mas o demônio não desanimava, e, com quanto mais força a prima o repelia, tanto mais prontamente ele voltava aos pés dela, como o trapézio que o acrobata arremessa e logo torna na proporção do impulso recebido.
E aquela constante repressão dos desejos o atormentava dia e noite; aquele amor enjaulado dentro dele, como uma fera, indo e vindo incessantemente, sem encontrar descanso, nem repousar um instante, deixava-o prostrado e cada vez mais sôfrego.
Contudo, não desanimava: Ah! ele tanto havia de lançar aos pés daquela estátua o fogo de sua paixão que o bronze acabaria derretendo-se.
E Aguiar, seguro de que não a venceria só com a força do seu amor, começou a fingir-se desinteressado e generoso; com tal ciência que Branca foi aos poucos abrindo para ele uma excepção no terrível juízo que fazia dos homens, chegando até a arrepender-se de o ter julgado tão mal e transformando-o insensivelmente em amigo íntimo, a quem por último já confiava os segredos das suas mágoas e as queixas que tinha contra o marido. E o velhaco aproveitava com muito jeito tais regalias para denunciar as culpas e as fraquezas de Teobaldo, que por este próprio lhe eram reveladas.
Branca o ouvia sempre com a mesma calma, imperturbável e altiva, os olhos meio cerrados, os lábios contraídos numa dura expressão de asco.
- Ah! Mas não devemos condená-lo por isso... dizia o traiçoeiro. - Nele, aquilo é uma questão de gênio!... Teobaldo nunca poderia dar um bom marido; nunca seria capaz de dedicar-se durante a vida inteira por qualquer pessoa, fosse esta, a mais adorável das criaturas. Todo ele é pouco para pensar em si mesmo; tudo que não for ele; tudo que não for a sua querida e respeitável individualidade, nenhum valor tem a seus olhos; tudo que não for ele, é público e faz parte do resto da humanidade, a quem, na sua louca pretensão, ele considera um simples complemento de sua pessoa. Então, na eterna febre de armar ao efeito e não desgostar seja lá a quem for, jamais tem franqueza para ninguém: se lhe pedem qualquer obséquio, ele nunca diz que não, promete sempre, ainda que um instante depois já nem se lembre de semelhante coisa; se uma mulher lhe lança um sorriso de provocação, ele responde com outro, ainda que a deteste; não tem amigos - tem auditório; não tem amor - tem amantes. É uma simples questão de vaidade, no sentido positivista da palavra. Ele, enquanto fala, não se dirige à pessoa com quem conversa, mas sim às que o observam de parte, só preocupando com o efeito que está produzindo sobre elas. E, como é na conversa, é em todos os atos de sua vida.
Branca ficou muito surpreendida e perdeu por instantes a sua calma habitual, uma vez em que o primo lhe declarou que Teobaldo, antes da mulher do conselheiro, já tivera tido muitas outras amantes de igual espécie.
- E depois dessa? perguntou ela.
- Ora! respondeu Aguiar, com um sorriso de quem perdoa. Hoje, em certas rodas aristocráticas, ser amante de Teobaldo é um indispensável atestado de bom-gosto; as senhoras da moda o adoram e cuidam dele como de um objeto de sua propriedade. O desgraçado não se pertence; não pode dar um passo sem ter de voltar-se para a direita e para a esquerda, sempre a fingir que ama, sempre a enganar. Para o que, diga-me, quais são as noites que ele passa aqui? Depois que a prima se retraiu e desertou das festas, quase nunca o vê, não é verdade? Entretanto, no Rio de Janeiro não há função de certa ordem em que ele não seja ouvido e consultado previamente. Se há concerto na festa, foi ele quem organizou o programa; se há dança, é ele quem tem de dirigir o cotilhão; se é preciso um discurso qualquer, uma poesia, aí está o Teobaldo recitando! Em todas as salas, quer esteja ou não esteja presente, só se ouve o nome dele; velhos e rapazes procuram imitá-lo em tudo; ele é sempre quem dá a nota do tom, quem decreta a moda; qualquer modificação no seu penteado ou no feitio de sua barba levanta um formidável escândalo entre os seus imbecis admiradores, a sua presença é mais indispensável para o sucesso das festas do que mesmo a presença do Imperador, de quem ele aliás já conseguiu as simpatias, graças a habilidade com que o seduziu.
Quando aquele demônio chega a qualquer parte, ouve se logo de todos os lados: "Aí está o Teobaldo! O Teobaldo! O Teobaldo!" Os que ainda não o conhecem correm logo a vê-lo; os outros apressam-se a mostrar que tem a honra de se dar com ele, e todos se mexem e tudo se agita para lhe dar passagem. Chega e daí a pouco está cercado de gente, sem que ninguém saiba explicar lucidamente por que razão lhe fazem tamanha roda. Ele descerra os lábios? diz qualquer coisa? é um sucesso infalível, e a sua frase, ainda que seja mais banal, a mais piegas, corre logo de boca em boca, é repetida e logo aclamada como o verbo da sabedoria divina. Opinião boa, apareça por aí a respeito de qualquer fato, ou de qualquer produção artística, ou de qualquer homem notável, não se pergunta de quem é, atribui-se logo a ele!
Branca, todas as vezes em que o primo lhe falava dessa maneira sentia, malgrado a energia do seu caráter, ir crescendo e subindo em torno de seu coração a irresistível torrente daquelas verdades, como se ela estivera em meio de um dilúvio. Não era que fizesse empenho em reconquistar o esposo, mas sim como que uma espécie de revolta contra o destino, que entendera não lhe dar a felicidade a que ela se julgava com direito, sendo tão amorosa, tão leal e tão digna.
E a onda implacável, que o primo lhe despejava intencionalmente contra a delicadeza de suas mágoas, depois de afogar-lhe o coração, transbordava-lhe pelos olhos e pela garganta desfeita em lágrimas e soluços.
Era isso o que ela com tanto empenho queria evitar era isso justamente o que ele queria que sucedesse, para a tomar de surpresa, e segurar-lhe as mãos, e dizer-lhe como se falasse delirando.
- Mas não se aflija, não se aflija por amor de Deus! Repare que os seus soluços me enlouquecem! Creio que aquele ingrato não lhe merece essas lágrimas tão puras e tão sentidas!
- Não é por ele que eu choro, respondia Branca, sem descobrir o rosto, - choro por mim própria, pela minha desgraça, pelo muito que padeço!
Aguiar então, com extrema delicadeza, aproximava-se da prima e principiava a afagá-la que nem a uma criança.
- Então! então... dizia-lha meio repreensivo. Vamos, não se aflija! Veja se consegue tranqüilizar-se!...
Ela, muito envergonhada por deixar a descoberto os seus desgostos, acabava queixando-se com franqueza.
- É que, dizia, já não tenho ânimo de sair de casa ao menos; de ir a qualquer divertimento, a qualquer parte; porque a presença de toda a gente me faz um mal horroroso! Quando saio com meu marido e me acho no meio das salas ao lado dele, sinto-me ainda mais só do que se fico entre as quatro paredes do meu quarto; sinto-me ridícula, desamparada, submissa a um homem que pertence a todo o mundo, menos a mim. Oh! Esta posição é degradante!
- Mas, porventura não estou eu ao seu lado? porventura não pode minha prima contar ainda com um irmão, um amigo delicado, que tudo daria para a ver tranqüila e venturosa?
- Obrigada; não me conformo, porém, com esta viuvez a que me condenou injustamente o homem a quem confiei a minha felicidade, o homem a quem entreguei todos os meus sonhos e todo o meu amor!
- E ainda o ama talvez!...
- Não, já não o amo, e é isso justamente o que não lhe perdoarei nunca! é ter-me obrigado a desprezá-lo, é ter feito de mim uma esposa sem amor, uma mulher casada que não ama ao seu marido e que por conseguinte há de fatalmente ser mártir, quer submetendo-se à sua desgraça, quer tentando disfarçá-la com outra ainda pior!
- Pior?! Pior do que o eterno suplício de aturar junto de si uma pessoa que abominamos?... Pior do que sacrificar tudo, a mocidade, o futuro de todos os gozos a que temos direito?.
- Sim, pior, porque no outro caso o sacrifício que se tem a fazer é o sacrifício da honra! Bem ou má sou mulher casada e como tal hei de proceder enquanto durar meu marido!
Aguiar, que não esperava por estas palavras, estacou defronte delas, mas sem se dar ainda por vencido.
XII
A singularíssima posição de Teobaldo, entre a chamada melhor sociedade do seu tempo, vinha pura e simplesmente das graças dele, do seu espírito e de seu talento de saber, como ninguém, dar a cada um indivíduo aquilo que lhe era mais lisonjeiro ou agradável; vinha de conseguir agradar ao gosto de todos, desde o Imperador até ao último dos copeiros, sem aliás desgostar a ninguém, o que é muito difícil. A sua invejável atitude de homem raro e desejado por todos procedia em linha reta da sua excepcional habilidade de transformar-se sem o menor esforço, sem que ninguém desse por isso, e amoldando-se ao gosto da pessoa que tinha defronte de si, como a nuvem que percorre uma cordilheira e vai tomando o feitio de cada montanha que atravessa.
Pândego para os pândegos, homem sério para os homens sérios, ele a todos agradava e com todos se afinava, sem aliás perder uma linha da originalidade do seu tipo e da esquisitice do seu gênero, assim como um pintor de talento conserva o seu estilo próprio em mil diversas fisionomias que lhe saem da palheta.
Além dessas, havia uma outra razão, talvez não menos poderosa, e com certeza menos legítima.
Era a paternidade que lhe davam (e contra a qual ele protestava muito frouxamente) de uma famosa série de artigos, então publicados em várias revistas científicas e várias folhas diárias.
A história desses artigos é a seguinte: Coruja, havia muito, entregara-se por gosto e por necessidade de sua índole ao estudo sério e acurado de umas tantas matérias a que em geral chamam áridas, e com as quais Teobaldo não seria capaz de entestar.
Sem imaginação, nem talento inventivo e nem arte, André só assim encontrou meio de usar da sua grande atividade intelectual e foi aos poucos se familiarizando com os estudos econômicos e sociológicos.
Pode ser que esse apetite fosse ainda uma conseqüência da sua idéia fixa e dominante - a história do Brasil, obra esta a que ele se escravizara desde os seus vinte anos e da qual nunca se distraíra investigando sempre, inalteravelmente, com a calma e a paciência de um sábio velho que se dedica ao trabalho só pelo prazer de trabalhar, sem a menor preocupação de elogio ou glória. Essa obra ainda estava longe de seu termo, mas representava já uma soma enorme de serviço: compilações de todo o gênero e apontamentos de toda a espécie.
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
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