domingo, 27 de setembro de 2009

Leitura 42

- Senhor!

- Chama o Caetano.

Era uma idéia que lhe acudira com vislumbres de inspiração.

- O Caetano... repetiu o criado, saiba V. Exa. que o Caetano está de cama.

- De cama?... Que tem ele?

Amanheceu há quatro dias com muita febre e ainda não melhorou.

- Achava-se nesse estado, e nada me diziam! Canalha!

- Peço perdão, mas devo notar que o senhor conselheiro há muito tempo que não aparece a ninguém.

- Cala-te. Sou capaz de apostar que deixaram sozinho o pobre do velho!...

- Saiba V. Exa. que a Sra. D. Branca, que o tem ido ver muitas vezes todos os dias, deu ordem ao Sabino para não sair do lado dele.

- Bem. Previne ao Sabino que eu quero ir ver o Caetano.

O criado, surpreso com estas palavras, mas sem o dar a perceber, afastou-se imediatamente; ao passo que o amo, vestindo-se às pressas e, contra o seu costume, em desalinho, abandonou ainda uma vez o gabinete e ganhou em direitura ao quarto do enfermo.

Não era, como ele próprio supunha na sua necessidade de fazer bem, o interesse pelo velho servo de seu avô e companheiro de seu pai o que o impelia àquele ato de piedade, mas simplesmente a urgência de falar com alguém que ainda o estimasse; alguém que lhe arrancasse o coração do lastimável estado em que se achava naquele instante.

Recebeu um logro. O pobre velho não dava mais acordo de si e só dizia palavras desnorteadas pelo delírio da febre.

- Não me reconheces, amigo velho? perguntou-lhe o conselheiro, amparando-se-lhe das mãos hirtas e nodosas.

- Sim, Nho Miló? Meta a espora no cavalo, que os Saquaremas, embicando por este lado, hão de encontrar homem pela proa!

E os olhos do velho torciam-se nas órbitas com um aceso de cólera senil.

- Sonha com meu pai e com as revoluções de Minas!... pensou Teobaldo entristecido. Ah! o Barão do Palmar foi ao menos um homem! É justo que este desgraçado lhe dedique os seus últimos pensamentos em vez de os dedicar a mim, que nem isto mereço. É justo! É justo!

E saiu dali para esconder o seu desespero contra aquele maldito velho, que, no delírio da morte, não achava uma palavra de consolação para lhe dar.

Atravessou a chácara sem levantar a cabeça, o ar muito sombrio e pesado, os olhos fundos e cheios de sangue.

Quando chegou à rua, estacou e pôs-se a olhar para as águas da baía que se douravam aos primeiros raios de sol.

Pôs-se a andar pela praia, vagarosamente, quase que sem consciência do que fazia.

E o dia, que apontava, um dia triste e cheio de névoas, um dia sem horizonte, como o próprio espírito de Teobaldo, ainda mais lhe agravava o mal-estar.

Ele sentia frio e dores por todo o corpo.

Caminhou assim durante uma hora; cabeça baixa, mãos nas algibeiras do sobretudo e uma secura enorme a lhe escaldar a garganta.

Três vezes tentou fumar e de todas lançou fora o charuto, porque não podia suportar o cheiro do fumo.

Afinal viu um carro de praça, chamou-o, meteu-se dentro dele e mandou tocar para a casa do Coruja.

Todavia, depois mesmo de estar em caminho, hesitava em lá ir. O seu procedimento para com o pobre amigo não podia ser pior e mais ingrato do que fora, ultimamente.

Nada fizera do que lhe prometera; não lhe dera o tal emprego, nem mandara publicar a célebre história do Brasil.

- E havia tanto tempo que já não se viam!... Em que disposição estaria André a respeito dele?... Qual teria sido nessa ausência a sua vida, com uma família às costas e sem meios de ganhar dinheiro?... Quem sabe até se ele tivera estado doente?... Quem sabe se já não teria morrido?...

Davam sete horas quando Teobaldo entrava em casa do Coruja.

O aspecto do corredor, o silêncio que aí reinava, entristeceram-no, pondo-lhe no coração um vago sentimento de remorso.

- Com um bocadinho de esforço, pensou a sua consciência, ter-se-ia restituído a esta pobre gente a primitiva felicidade!...

Foi Inez que veio recebê-lo, e, posto que surpresa com a visita, ela deixava transparecer no semblante as contrariedades de sua vida.

- Como está a senhora sua mãe? perguntou Teobaldo.

- Mal, Sr. conselheiro; há mais de um mês que ela não faz outra coisa senão gemer. Está cada vez pior. Agora tudo lhe dói: são as pernas, os braços, a caixa do peito, as costas, o pescoço e a cabeça! Coitada, chega a fazer dó!

- E o André? Como vai?

- Não sei, não senhor, mas também não anda bom! Ultimamente quase que não dá uma palavra a pessoa alguma; entra da rua e sai de casa, sem tugir nem mugir; às vezes mete-se no quarto às seis da tarde e só dá sinal de si no dia seguinte.

- E como vão os negócios dele? Sabe?

- Sei cá! Se ele não fala com pessoa alguma! Não dá uma palavra!

- Tem trabalhado muito?

- Trabalhado?

- Pergunto se tem escrito.

- É natural; pelo menos leva um tempo infinito metido no quarto.

- Ele está aí?

- Está, sim, senhor; faz favor de entrar.

Teobaldo foi bater à porta do Coruja e ficou gelado defronte do ar frio que este o recebeu.

- Como vais tu? disse.

André sacudiu os ombros e resmungou alguns sons que não lhe passaram da garganta.

- Que diabo tens hoje? Acho-te mudado.

- Nada.

- Não! Tens alguma coisa que te aflige!

- Aborrecimento. Entra. Já tomaste café?

- Ainda não, e quero, porque não me sinto bem.

- Estás doente? Nunca te vi tão amarelo e tão abatido.

- É! Efetivamente não tenho passado bem! Apoquentações... Agora mesmo creio que sinto febre! Não imaginas a vida que levo! Um martírio!

Coruja afastou-se para ir buscar café e o outro então o considerou melhor. O desgraçado estava muito mais acabado e mais feio: caía-lhe agora, todo o cabelo sobre os olhos, que se sumiam debaixo das pálpebras; a boca envergava-se para baixo em uma expressão constante de desgosto e ressentimento; as costas arqueavam-se-lhe como as de um catético, e o peito afundava-se-lhe cavernosamente, tornando-o mais encolhido, mais mesquinho e mais reles.

- Pois, meu amigo, confesso-te, disse Teobaldo, quando ele voltou com as xícaras, que te procurei, porque preciso de ti, como de pão para a boca. Preciso da tua companhia. Aqui onde me vês, sou uma vítima do isolamento e do tédio!

André não respondeu e foi assentar-se a um canto do quarto, sobre um caixão vazio.

- Ah! meu bom Coruja, prosseguiu S. Exa., não calculas como ando! Um inferno! Sinto-me farto, inteiramente farto da vida! Sinto-me devastado! Preciso de ti! Quero-te ao meu lado! Venho buscar-te, e não volto para casa sem te levar comigo!

- Impossível! respondeu o outro seca mente.

- Impossível?! repetiu o ministro, fulminado por esta palavra. Como impossível?! Pois tu não queres vir comigo?

- Não posso.

- E por quê?

- Porque me sinto inutilizado! Já não presto para nada! Já não posso suportar a companhia de ninguém!

- Ora essa! Então tu também estás desgostoso?

- Mais do que podes supor. E peço-te que mudemos de assunto.

Fez-se um grande silêncio entre os dois; cada um fitava o seu ponto, sem ânimo de trocarem um olhar entre si.

Teobaldo perguntou afinal, erguendo-se:

- Não devo então contar contigo?

- Não, não posso ir. Desculpa-me.

- Está bom! Paciência!

E, depois de dar em silêncio uma volta pelo quarto, disse meio hesitante:

- É verdade! E a tua história do Brasil? Terminaste-a?

O Coruja, sem desviar os olhos do lugar em que estavam presos, apontou para um grande montão de papéis rotos, acumulados ao fundo do quarto.

- Que é isto? interrogou o conselheiro.

- Desisti.

- Como assim?

- Abandonei por uma vez!

- Não concluíste o trabalho?

- Não.

- Mas foi loucura de tua parte.

Coruja sacudiu os ombros, indiferentemente, e pousou os cotovelos sobre os joelhos, ficando com as duas mãos abertas contra o queixo, sem dar mais uma palavra.

Causava estranha e viva impressão aquela figura tétrica e sofredora, que parecia agora mergulhada nesse estado comatoso que às vezes acomete os loucos.

Embalde tentou o outro puxar por ele e, vendo o egoísta que, em vez de consolações, encontrara ali ainda maior desânimo que o seu, despediu-se e saiu arrastando até à casa a negra túnica das suas aflições.

- Até este! pensava ele já na rua, até o Coruja me vira as costas! Só o público, essa besta insuportável e estúpida, só o público me abre os braços! E do que me serve o público, se não tenho a quem amar? Do que me serve o público, se vivo neste isolamento pior que tudo? Do que me servem admiradores, se não tenho amigos?

Durante o caminho, Teobaldo, justamente ao contrário do que sucedia com André, encontrou mil pessoas que corriam a saudá-lo, apertar-lhe a mão, que o abraçavam, que o felicitavam "mais uma vez" por tais e tais gloriosos feitos.

Mas em todas essas fisionomias só viu e percebeu: - em umas, a adulação; em outras o fingimento; em outras a má vontade invejosa e sem ânimo para se patentear; e em nenhuma encontrou o que ele procurava com tamanho empenho, aquilo que ele dantes descobria em quantos o amavam e a quem afastou de si, para sempre; isto é, a dedicação, o desinteresse, a verdadeira amizade.

- Ah! não valia a pena sacrificar àquela besta esse inestimável tesouro, que agora lhe fazia tanta falta!

E era tarde! O egoísta já não podia encontrar em torno de si senão a sombra de si mesmo. E todos que o idolatravam com tanto desinteresse e aos quais ele só respondeu com a ingratidão, perpassavam agora em torno de seu espírito como espetros de remorso que se erguiam para o fazer mais infeliz, mais inconsolável e mais revoltado contra o seu isolamento.

Ainda como o Coruja, ele desejava fugir do público e ao mesmo tempo sentia medo de meter-se em casa. A rua e o lar eram para ambos um tormento de gênero diverso, mas de iguais efeitos.

Foi, pois, completamente aniquilado, que ele chegou ao portão da sua chácara.

Um criado veio dizer-lhe logo, que o velho Caetano estava agonizante.

Teobaldo apressou-se a ir ter com ele, apesar da prostração, em que se achava.

Um comentário:

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