Além disto, muito emporcalhada pelas duas crianças (a segunda nascera), muito cheia de desmazelo e de privações; o pé sujo e sem meia, o cós do vestido despregado e roto; sempre descansado e indiferente, sempre "Tanto se me dá, como se me dê", sempre a repetir o seu velho provérbio "Homem, mais vale a nossa saúde!"
Coruja perguntou-lhe como ia o marido.
- Foi para o hospital, respondeu ela.
- Para o hospital?
- Decerto, pois se lhe deu a fúria!.
- Como a fúria?
- Ora; deu para doido furioso. Quebrou aí uma porção de coisas, rasgou toda a roupa e afinal fugiu para a rua, a dar berros e quase nu. A polícia agarrou-o e meteu-o no hospício. Nós o deixamos lá, porque ele aqui não podia ficar; já bastam as consumições que temos, e não são poucas! Se eu lhe disser que seu Costa não nos deixou sequer uma xícara inteira!... Quebrou tudo, tudo que era louça!
- Coitado! lamentou André.
- Ora! a culpa foi só dele; para que bebia daquele modo? Ah! o senhor não imagina às vezes enxugava três garrafas de parati durante o dia! Nunca vi assim! Credo!
- Coitado!
- Não apanhava um vintém, que não fosse para o demônio do vício! Ultimamente estava até descarado; pedia dinheiro a todo o mundo - para beber!
- É uma desgraça!
- Ora! o médico bem que o preveniu. Importou-se esta mesa com o que disse o médico. Assim fez ele! Até parece que ao depois que lhe proibiram os espíritos, bebia ainda mais!
- Uma verdadeira desgraça, coitado!
- Coitado! coitado! Coitada mas é de mim, que me casei só para ficar com duas crianças às costas e agora de mais a mais com minha mãe doente, que era a única pessoa que me ajudava! Coitada de mim e de meus filhos!
- Descanse que a senhora e seus filhos não hão de morrer de fome! Enquanto Deus me der um pouco de forças, hei de olhar por todos.
Inez agradeceu suspirando tristemente, como quem se submete a um vergonhoso sacrifício.
E desde esse dia, o Coruja ficou sendo o esteio daquela desgraçada família.
Então, todas as tardes, levava-lhes o que podia, pagava-lhes a botica, o padeiro, o açougue e finalmente o aluguel da casa.
Mas só ele sabia os sacrifícios que isso lhe custava; só ele sabia quanto esforço era necessário por em prática para que não faltasse o pão de cada dia àquela gente a quem o monstro, na loucura da sua extrema bondade, entendia dever proteção e apoio.
E quem o visse tão maltrapilho, tão miserável, a bater a cidade de um ponto a outro à procura de fazer dinheiro; quem o visse tão reles, tão ordinário e tão chato, não seria capaz de acreditar que à sombra das asas daquele corvo se abrigava inteira uma família de pardais.
- Por que o senhor não vem morar conosco? perguntou-lhe Inez, um dia em que o Coruja deixou involuntariamente transparecer o embaraço que lhe causava morar em casa de Teobaldo.
E ela acrescentou para justificar a sua proposta:
- Acho que o senhor faria bem; em primeiro lugar, porque teria aqui quem cuidasse do que é seu, de sua roupa, de seus papéis; segundo, escusava de comer em outra parte, porque comeria aqui conosco e assim a comida sai mais em conta, e, finalmente para deixar por uma vez aquela casa, que digam o que disserem, é a principal causa dessa tristeza em que o senhor vive.
O Coruja, apesar do desgosto que lhe trazia a idéia de separar-se do amigo, reconhecia razão de sobra nas palavras de Inez. Sim, não havia dúvida que ele precisava mudar-se da casa de Teobaldo e, se havia de ir para outra parte, era melhor que fosse para ali, onde todas as despesas já corriam por sua conta. Ao menos seria isso o mais lógico.
- Quer então deixar-nos? interrogou Teobaldo na ocasião em que ele lhe deu parte da mudança.
- É melhor, respondeu André, ali fico mais à minha vontade; sinto muito separar-me de ti, mas reconheço que a minha presença muitas vezes te constrange...
E, porque Teobaldo fizera um gesto negativo:
- Ah! não é por tua causa, decerto! mas pelos que te cercam... Conheço perfeitamente o que são estas coisas... A política e a sociedade têm exigências muito especiais. Não te perdoariam a minha amizade, se soubessem até que ponto de intimidade ela chega. Assim, pois, é melhor mesmo que eu vá e que apenas te apareça de vez em quando, para te ver.
- Bem... disse Teobaldo, faze lá o que quiseres; não te contrario, mas bem sabes que a minha casa estará sempre às tuas ordens.
- Ah! quando de todo me faltar um canto para me meter...
- Certamente, certamente. Já sabes que aqui não serás nunca um estranho.
- Eu hei de aparecer sempre.
Mas Teobaldo já não lhe podia prestar atenção, porque era todo de um discurso que pretendia apresentar na câmara no dia seguinte.
Branca mostrou-se em extremo sentida com a mudança do Coruja; foi com os olhos cheios dágua que ela se despediu dele.
- Seja sempre meu amigo, disse, e, quando não tiver o que fazer, venha ler-me algumas páginas dos seus poetas favoritos.
- Deixo-os todos com a senhora, respondeu André, era essa a minha intenção desde que pensei na mudança. É para não se esquecer de mim.
- Obrigada; creia que não era preciso isso; o senhor nunca será esquecido nesta casa.
Depois disto, ele foi abraçar o velho Caetano, despediu-se de todos os outros criados, e saiu logo para não perder de vista a sua bagagem, que já havia partido adiante.
Uma coisa o mortificava agora, era que Teobaldo não tinha mais para com ele aquelas expansões primitivas; já se lhe não abria nos seus momentos penosos; já não lhe expunha, como dantes, as suas preocupações, e já igualmente não lhe pedia conselhos.
Agora dir-se-ia até que ele o tratava com um certo ar de proteção; que o ouvia distraído e apressado, sem conversar e dando-lhe muito menos atenção do que qualquer dos seus amigos dos mais modernos.
- É que ele vive lá preocupado com os seus negócios.. . pensou o Coruja, para se consolar. Mas sentiu perfeitamente que no fundo azul do seu coração um principio de sombra se formava, como a nuvem negra que surge no horizonte, ameaçando logo a estender-se pelo céu inteiro e transformar-se em medonha tempestade.
Perder a amizade de Teobaldo! Oh! de todas as suas desilusões seria essa com certeza a mais cruel e dolorosa!
- Não! não era possível!
E André nem pensar queria em semelhante coisa. Defronte de tal hipótese o seu pensamento recuava aterrado, fugindo de todo e qualquer raciocínio.
E no entanto, logo à primeira visita que ele fez ao amigo depois da mudança, ainda o encontrou mais frio e distraído.
André ia pedir-lhe algum dinheiro e Teobaldo deixou muito claramente perceber a sua impaciência.
- Sabes, filho, estou, que não imaginas, atrapalhado com uma infinidade de coisas! Agora não posso tratar disso. Aparece logo! Adeus.
XXII
Meses depois, quando as câmaras já se achavam fechadas e o ministério em crise, a rua do Ouvidor regorgitava de povo que vinha de todos os pontos da cidade saber as novidades políticas. Falava-se muito em dissolução das câmaras; falava-se em subir de novo o partido liberal; citavam-se conselheiros que Sua Majestade o imperador mandara chamar a S. Cristóvão.
Mas, de repente, tudo serenou; porque um grande letreiro acabava de ser fixado à porta de um jornal: "Organização do novo gabinete conservador".
E entre os sete nomes que aí se liam, achava-se também o de Teobaldo Henrique de Albuquerque.
O organizador do novo ministério chamara-o na véspera para lhe dar a pasta da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.
Estava ministro.
O Coruja, logo ao saber da grande nova, não se pode conter e atirou-se para a casa do amigo.
- Teobaldo ministro! Oh! que belo! que belo! ia ele a pensar pelo caminho. Quem o havia de supor? Deputado apenas nesta última candidatura e já hoje no poder! Isto é o que se chama andar aos pulos!
E foi com imensa dificuldade que o Coruja conseguiu chegar até à porta de S. Exa., tal era a multidão que aí se reunia, para saudar o novo ministro. A rua, a chácara tudo estava cheio de gente, uma banda de música tocava o hino nacional em frente da casa, e dentre o povo partiam repetidos vivas ao herói daquela festa e ao partido conservador.
André deteve-se um pouco entre a multidão, empenhado em escutar os originais e desencontrados comentários que se faziam a respeito do amigo.
- Não há dúvida que ele é uma grande cabeça! dizia um sujeito em meio de uns quatro ou cinco.
- Ora qual! opunha um destes, não passa de um felizardo! Entrou na câmara dos deputados por um acaso e ainda por outro acaso conseguiu pilhar uma pasta.
- Como por acaso?
- Pois então há quem ignore que este tino foi chamado às pressas para substituir o Rosas, que não aceitava o programa do Paranhos? Entrou para fazer número e, uma vez passada a lei, mandam-no passear de novo.
Em outro grupo se afirmava que Teobaldo era no Brasil o homem talvez de maior ilustração e com certeza o de idéias mais adiantadas.
- Hão de ver o que vai sair dai!
- É um portento, não há dúvida!
Um desses dera a sua palavra de honra em como o partido conservador jamais tivera um ministro tão teso, tão ativo e tão reto. E jurava que as repartições públicas sujeitas à alçada dele iam agora ver o bom e o bonito.
- Ah! Já foi contando com isso que o chamaram para o poder, acrescentou o outro. E afianço que certos empregadinhos vão pedir demissão de seus lugares, antes que Teobaldo lha dê.
- É um farofa! dizia entretanto um tipo de outro magote, um retórico! Não enxerga um palmo adiante do nariz, nada sabe, nada! Um verdadeiro pulha!
Mais adiante se dizia que a principal qualidade de Teobaldo era a pureza de caráter e, logo ao pé, proclamavam-no um velhaco de marca maior.
- Hipócrita só como ele! segredava-se aqui.
- Homem sincero! considerava-se ali.
- Ele o que é, dizia alguém, é um grande pândego! Foi eleito deputado pelo escrutínio secreto das damas e chegou até ao poder subindo por uma trança de cabelos louros.
terça-feira, 22 de setembro de 2009
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