terça-feira, 22 de setembro de 2009

Leitura 37

Além disto, muito emporcalhada pelas duas crianças (a segunda nascera), muito cheia de desmazelo e de privações; o pé sujo e sem meia, o cós do vestido despregado e roto; sempre descansado e indiferente, sempre "Tanto se me dá, como se me dê", sempre a repetir o seu velho provérbio "Homem, mais vale a nossa saúde!"

Coruja perguntou-lhe como ia o marido.

- Foi para o hospital, respondeu ela.

- Para o hospital?

- Decerto, pois se lhe deu a fúria!.

- Como a fúria?

- Ora; deu para doido furioso. Quebrou aí uma porção de coisas, rasgou toda a roupa e afinal fugiu para a rua, a dar berros e quase nu. A polícia agarrou-o e meteu-o no hospício. Nós o deixamos lá, porque ele aqui não podia ficar; já bastam as consumições que temos, e não são poucas! Se eu lhe disser que seu Costa não nos deixou sequer uma xícara inteira!... Quebrou tudo, tudo que era louça!

- Coitado! lamentou André.

- Ora! a culpa foi só dele; para que bebia daquele modo? Ah! o senhor não imagina às vezes enxugava três garrafas de parati durante o dia! Nunca vi assim! Credo!

- Coitado!

- Não apanhava um vintém, que não fosse para o demônio do vício! Ultimamente estava até descarado; pedia dinheiro a todo o mundo - para beber!

- É uma desgraça!

- Ora! o médico bem que o preveniu. Importou-se esta mesa com o que disse o médico. Assim fez ele! Até parece que ao depois que lhe proibiram os espíritos, bebia ainda mais!

- Uma verdadeira desgraça, coitado!

- Coitado! coitado! Coitada mas é de mim, que me casei só para ficar com duas crianças às costas e agora de mais a mais com minha mãe doente, que era a única pessoa que me ajudava! Coitada de mim e de meus filhos!

- Descanse que a senhora e seus filhos não hão de morrer de fome! Enquanto Deus me der um pouco de forças, hei de olhar por todos.

Inez agradeceu suspirando tristemente, como quem se submete a um vergonhoso sacrifício.

E desde esse dia, o Coruja ficou sendo o esteio daquela desgraçada família.

Então, todas as tardes, levava-lhes o que podia, pagava-lhes a botica, o padeiro, o açougue e finalmente o aluguel da casa.

Mas só ele sabia os sacrifícios que isso lhe custava; só ele sabia quanto esforço era necessário por em prática para que não faltasse o pão de cada dia àquela gente a quem o monstro, na loucura da sua extrema bondade, entendia dever proteção e apoio.

E quem o visse tão maltrapilho, tão miserável, a bater a cidade de um ponto a outro à procura de fazer dinheiro; quem o visse tão reles, tão ordinário e tão chato, não seria capaz de acreditar que à sombra das asas daquele corvo se abrigava inteira uma família de pardais.

- Por que o senhor não vem morar conosco? perguntou-lhe Inez, um dia em que o Coruja deixou involuntariamente transparecer o embaraço que lhe causava morar em casa de Teobaldo.

E ela acrescentou para justificar a sua proposta:

- Acho que o senhor faria bem; em primeiro lugar, porque teria aqui quem cuidasse do que é seu, de sua roupa, de seus papéis; segundo, escusava de comer em outra parte, porque comeria aqui conosco e assim a comida sai mais em conta, e, finalmente para deixar por uma vez aquela casa, que digam o que disserem, é a principal causa dessa tristeza em que o senhor vive.

O Coruja, apesar do desgosto que lhe trazia a idéia de separar-se do amigo, reconhecia razão de sobra nas palavras de Inez. Sim, não havia dúvida que ele precisava mudar-se da casa de Teobaldo e, se havia de ir para outra parte, era melhor que fosse para ali, onde todas as despesas já corriam por sua conta. Ao menos seria isso o mais lógico.

- Quer então deixar-nos? interrogou Teobaldo na ocasião em que ele lhe deu parte da mudança.

- É melhor, respondeu André, ali fico mais à minha vontade; sinto muito separar-me de ti, mas reconheço que a minha presença muitas vezes te constrange...

E, porque Teobaldo fizera um gesto negativo:

- Ah! não é por tua causa, decerto! mas pelos que te cercam... Conheço perfeitamente o que são estas coisas... A política e a sociedade têm exigências muito especiais. Não te perdoariam a minha amizade, se soubessem até que ponto de intimidade ela chega. Assim, pois, é melhor mesmo que eu vá e que apenas te apareça de vez em quando, para te ver.

- Bem... disse Teobaldo, faze lá o que quiseres; não te contrario, mas bem sabes que a minha casa estará sempre às tuas ordens.

- Ah! quando de todo me faltar um canto para me meter...

- Certamente, certamente. Já sabes que aqui não serás nunca um estranho.

- Eu hei de aparecer sempre.

Mas Teobaldo já não lhe podia prestar atenção, porque era todo de um discurso que pretendia apresentar na câmara no dia seguinte.

Branca mostrou-se em extremo sentida com a mudança do Coruja; foi com os olhos cheios dágua que ela se despediu dele.

- Seja sempre meu amigo, disse, e, quando não tiver o que fazer, venha ler-me algumas páginas dos seus poetas favoritos.

- Deixo-os todos com a senhora, respondeu André, era essa a minha intenção desde que pensei na mudança. É para não se esquecer de mim.

- Obrigada; creia que não era preciso isso; o senhor nunca será esquecido nesta casa.

Depois disto, ele foi abraçar o velho Caetano, despediu-se de todos os outros criados, e saiu logo para não perder de vista a sua bagagem, que já havia partido adiante.

Uma coisa o mortificava agora, era que Teobaldo não tinha mais para com ele aquelas expansões primitivas; já se lhe não abria nos seus momentos penosos; já não lhe expunha, como dantes, as suas preocupações, e já igualmente não lhe pedia conselhos.

Agora dir-se-ia até que ele o tratava com um certo ar de proteção; que o ouvia distraído e apressado, sem conversar e dando-lhe muito menos atenção do que qualquer dos seus amigos dos mais modernos.

- É que ele vive lá preocupado com os seus negócios.. . pensou o Coruja, para se consolar. Mas sentiu perfeitamente que no fundo azul do seu coração um principio de sombra se formava, como a nuvem negra que surge no horizonte, ameaçando logo a estender-se pelo céu inteiro e transformar-se em medonha tempestade.

Perder a amizade de Teobaldo! Oh! de todas as suas desilusões seria essa com certeza a mais cruel e dolorosa!

- Não! não era possível!

E André nem pensar queria em semelhante coisa. Defronte de tal hipótese o seu pensamento recuava aterrado, fugindo de todo e qualquer raciocínio.

E no entanto, logo à primeira visita que ele fez ao amigo depois da mudança, ainda o encontrou mais frio e distraído.

André ia pedir-lhe algum dinheiro e Teobaldo deixou muito claramente perceber a sua impaciência.

- Sabes, filho, estou, que não imaginas, atrapalhado com uma infinidade de coisas! Agora não posso tratar disso. Aparece logo! Adeus.

XXII

Meses depois, quando as câmaras já se achavam fechadas e o ministério em crise, a rua do Ouvidor regorgitava de povo que vinha de todos os pontos da cidade saber as novidades políticas. Falava-se muito em dissolução das câmaras; falava-se em subir de novo o partido liberal; citavam-se conselheiros que Sua Majestade o imperador mandara chamar a S. Cristóvão.

Mas, de repente, tudo serenou; porque um grande letreiro acabava de ser fixado à porta de um jornal: "Organização do novo gabinete conservador".

E entre os sete nomes que aí se liam, achava-se também o de Teobaldo Henrique de Albuquerque.

O organizador do novo ministério chamara-o na véspera para lhe dar a pasta da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.

Estava ministro.

O Coruja, logo ao saber da grande nova, não se pode conter e atirou-se para a casa do amigo.

- Teobaldo ministro! Oh! que belo! que belo! ia ele a pensar pelo caminho. Quem o havia de supor? Deputado apenas nesta última candidatura e já hoje no poder! Isto é o que se chama andar aos pulos!

E foi com imensa dificuldade que o Coruja conseguiu chegar até à porta de S. Exa., tal era a multidão que aí se reunia, para saudar o novo ministro. A rua, a chácara tudo estava cheio de gente, uma banda de música tocava o hino nacional em frente da casa, e dentre o povo partiam repetidos vivas ao herói daquela festa e ao partido conservador.

André deteve-se um pouco entre a multidão, empenhado em escutar os originais e desencontrados comentários que se faziam a respeito do amigo.

- Não há dúvida que ele é uma grande cabeça! dizia um sujeito em meio de uns quatro ou cinco.

- Ora qual! opunha um destes, não passa de um felizardo! Entrou na câmara dos deputados por um acaso e ainda por outro acaso conseguiu pilhar uma pasta.

- Como por acaso?

- Pois então há quem ignore que este tino foi chamado às pressas para substituir o Rosas, que não aceitava o programa do Paranhos? Entrou para fazer número e, uma vez passada a lei, mandam-no passear de novo.

Em outro grupo se afirmava que Teobaldo era no Brasil o homem talvez de maior ilustração e com certeza o de idéias mais adiantadas.

- Hão de ver o que vai sair dai!

- É um portento, não há dúvida!

Um desses dera a sua palavra de honra em como o partido conservador jamais tivera um ministro tão teso, tão ativo e tão reto. E jurava que as repartições públicas sujeitas à alçada dele iam agora ver o bom e o bonito.

- Ah! Já foi contando com isso que o chamaram para o poder, acrescentou o outro. E afianço que certos empregadinhos vão pedir demissão de seus lugares, antes que Teobaldo lha dê.

- É um farofa! dizia entretanto um tipo de outro magote, um retórico! Não enxerga um palmo adiante do nariz, nada sabe, nada! Um verdadeiro pulha!

Mais adiante se dizia que a principal qualidade de Teobaldo era a pureza de caráter e, logo ao pé, proclamavam-no um velhaco de marca maior.

- Hipócrita só como ele! segredava-se aqui.

- Homem sincero! considerava-se ali.

- Ele o que é, dizia alguém, é um grande pândego! Foi eleito deputado pelo escrutínio secreto das damas e chegou até ao poder subindo por uma trança de cabelos louros.

Um comentário:

  1. QUERIDO ALUNO, AO POSTAR O SEU COMENTÁRIO NÃO DEIXE DE COLOCAR NOME, NÚMERO E SÉRIE.

    ResponderExcluir