quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Leitura 32

André, todavia, estava bem longe de desconfiar que era alvo de tais suspeitas; a sua existência agora, agora mais que nunca trabalhosa e cheia de responsabilidades, gastava-se em esforços de todo gênero. Oito meses haviam decorrido depois do seu compromisso com o Banco e, segundo os seus planos, a primeira entrada de dinheiro seria feita no dia convencionado.

Não perdera um instante e não distraíra um vintém das suas economias; todas as aspirações necessárias para chegar aos seus fins, ele as afrontara heroicamente; e D. Margarida e mais a filha, aguardando em sôfrego silêncio o termo dessa campanha, contavam as horas e os segundos, apenas reanimadas, de quando em quando, pelas palavras do professor, que parecia cada vez mais seguro do cumprimento da sua promessa.

Agora um novo tipo freqüentava a casa de D. Margarida. Era o Costa, um alferes de polícia, conhecido pela alcunha de Picuinha.

Homenzito esperto, despejado de maneiras e muito metido a taralhão com todo o mundo. Tinha o nariz comprido, laminoso e de papagaio, os olhos fundos, o queixo muito metido para dentro, com uma boquinha de coelho. Quando soltava uma das suas escandalosas gargalhadas, viam-se-lhe as presas, solitárias como as presas de um cão, porque ele já não possuía os dentes da frente. Era imberbe e macilento, o pescoço fino, as mãos nodosas e feias; todo ele raquítico e pobre de sangue, a jogar com o corpo da direita pata a esquerda, principalmente quando aparecia depois do jantar, com a farda desabotoada sobre o estômago, o boné à nuca, uma ponta de cigarro presa ao canto dos lábios e uma chibata na mão, a fustigar com ela de vez em quando o brim engomado das suas calças brancas.

D. Margarida o suportava por simples conveniência: o alferes era seu freguês de roupa e gostava de aparecer-lhe à tarde, para cavaquear à janela; um cotovelo sobre o peitoril, as pernas cruzadas, a cuspilhar consecutivamente pedacinhos de fumo que ele mascava do cigarro.

O que ela não podia lhe perdoar era o costume de bebida. O alferes em dias de folga metia-se no gole e escandalizava a rua inteira.

- É todo o seu mal! dizia a velha. Tirando daí, não há melhor criatura!

Ele gostava de brincar com todos; não tinha graça, mas estava sempre disposto a rir; o casamento de André era assunto obrigado das suas pilhérias, quando queria mexer com Inez.

- Ele, a modos que não tem lá essas pressas de casar!...

Chacoteava a respeito do Coruja, apresentando na sua boca de roedor as duas presas isoladas.

Mas, quando a velha tomava a defesa do futuro genro, o Picuinha fazia-se sério e elogiava-o.

- Bom moço... resmungava. Não é dos mais simpáticos, mas muito sisudo, e, dizem que sabe por uma academia!

A velha entrava então a falar sobre o colégio, sobre os altos compromissos de André e no casamento da filha, o qual seria efetuado, impreterivelmente, daí a quatro meses!

- E eu cá estou para entrar no bródio! exclamava o alferes, chibateando as calças. - Quero só ver como aquele tipo se sai nesse dia! Consta-me que vai ser coisa de arromba!

Ali pela vizinhança da velha com efeito já se boquejava a propósito do casório, e diziam até que o noivo estava muito bem e que o seu colégio era o melhor do Rio de Janeiro.

- Ah! mas também apertado como ele só! afirmava uma amiga de Inez, muito cheirona da vida alheia. Aquilo é criaturinha que traz por conta os cordões do bolso! Não há meio de lhe apanhar uma de X! E depois - que cara de homem, credo! Parece que está sempre arreliado!

O Coruja, em verdade, tornava-se cada vez mais esquisitório e mais e mais farroupilha; não havia meio de obrigá-lo a comprar um fato novo e a resignada Inez, posto não desse demonstrações, tinha já certo vexame quando o via surgir no canto da rua, com a grande cabeça enterrada nos ombros, a jogar o corpo no seu pesado andar de urso.

Em casa de Teobaldo, os criados o olhavam por cima do ombro e o Aguiar chegava muita vez a virar-lhe o rosto.

Dantes o primo de Branca ainda procurava disfarçar a sua repugnância pelo professor, mas agora nem se dava ao trabalho de fazer isso, e, sempre que a dona da casa lhe falava nele, não perdia a ocasião para ridicularizá-lo.

Em geral o pretexto destas zombarias era a famosa história do Brasil.

Branca procurava defender o trabalho do Coruja, chegando até a impacientar-se com aquela grosseira perseguição do primo.

XV

Aguiar, depois que emprestara os seis contos de reis a Teobaldo, deixava transparecer muito mais claramente aos olhos da prima as suas intenções a respeito desta; Branca fingia não dar por isso, mas, de si para si, tomava as suas cautelas contra o sedutor.

Não lhe convinha entretanto denunciá-lo ao marido, não só porque bem poucas vezes entrava em conversa íntima com este, como porque, conhecendo o gênio irrefletido de Teobaldo, temia, em lhe dizendo tudo, armar algum escândalo mais perigoso e lamentável do que o próprio objeto que o promovia.

Uma ocasião, porém, o primo chegou-lhe a falar com tamanha insistência e com tamanha clareza, que ela instintivamente ergueu-se da cadeira em que estava e mediu-o de alto a baixo.

- Por que me trata desse modo?... perguntou o Aguiar, abaixando os olhos e afetando tristeza.

- Porque o senhor assim o merece, respondeu ela imperturbavelmente.

- E terei eu culpa de amá-la tanto?...

- Proíbo-o de repetir semelhante frase, ou ver-me-ei obrigada a tomar medidas mais sérias a este respeito. E, por enquanto, não lhe posso prestar atenção. Com licença.

- Branca! ouça, peço-lhe que me ouça!

- Enquanto não estiver disposto a se portar dignamente para comigo, far-me-á o obséquio de não por os pés nesta casa.

Dito isto, Branca se afastou tranqüilamente, como se viera de dar qualquer ordem a algum dos seus criados, e saiu da sala sem o menor gesto que traísse a sua indignação.

Apesar disso, no entanto, ele não desistiu da sua empresa e, sem se dar por achado com as palavras da prima, continuou a freqüentar a casa, como se nada houvesse sucedido de extraordinário e apenas tratando de disfarçar o seu projeto de novos ataques.

Um belo dia, três meses depois daquela cena, surpreendendo Branca no fundo de um caramanchão que havia na chácara, a ler distraída, tomou-a de improviso pela cintura e caiu-lhe aos pés, exclamando:

- Perdoa, perdoa, se de tudo me esqueço e não resisto a este amor insensato que me consome.

E ia ferrar-lhe um beijo na face, quando Branca, escapando-lhe das mãos, ligeira como um pássaro, lançou-lhe contra o rosto uma bofetada.

Ele ergueu-se rubro de cólera e encarou-a de frente.

- Rua! fez ela, apontando-lhe a saída. Já!

Ele não se mexeu.

- Já! não ouviu?! Não quero que fique aqui nem mais um instante! Rua!

- Enxota-me?!

- E, se não me quiser obedecer, juro-lhe que Teobaldo a isso o constrangerá!

Aguiar sorriu, e respondeu afinal, torcendo o bigode entre os dedos:

- Não tenho medo de caretas, minha prima! Sairei daqui se eu bem quiser. Pode ir fazer queixa de mim a seu marido, vá! diga-lhe o que entender, não me assusto com isso... Agora, sempre lhe previno de que a honra dele está nas minhas mãos e que de um momento para outro, posso reduzi-lo a trapos! Vá! Pode ir! lembre-se, porém, de que eu tenho em meu poder títulos assinados por seu marido; títulos já vencidos e que são o bastante para lançá-los, a ele e a senhora, na ruína e na vergonha! Prefere lutar? Pois cá estou às suas ordens, e há de ver, que se fui fraco e imbecil no meu amor, saberei ser forte e cruel no meu ressentimento!

E o Aguiar saiu da chácara, deixando a prima inteiramente dominada pela impressão do que ouvira.

Quando tornou a si ela correu ao quarto, assustada e trêmula, como a corça que pressente a próxima tempestade, e lançou-se no leito, aflita e estrangulada por um desespero nervoso, um desespero que respirava de todo o seu ser, uma agonia que vinha de sua alma e também de sua carne; mas que ela de forma alguma podia explicar se era raiva, se era vergonha, se era ressentimento ou pura necessidade de amor.

E, oprimindo os olhos com os punhos cerrados e mordendo as articulações dos dedos, soluçava, soluçava tanto, e tão rápidos e seguidos eram os seus soluços que pareciam uma interminável gargalhada de quem enlouquece à força de sofrer.

À noite tinha febre, sentiu a cabeça andar à roda, mas ergueu-se e foi ter ao quarto do marido.

Ela! que havia tanto tempo não mostrava a menor curiosidade em saber a que horas ele entrava da rua ou saía de casa.

Teobaldo a recebeu tão surpreso quanto ela já estava calma e completamente senhora de si.

Era sem dúvida para impressionar aquela pálida figura de mulher, toda vestida de luto, que outro trajo não usara depois da sua viuvez moral, aquela figura altiva e sofredora, cuja expressão geral da fisionomia punha em colisão qualquer espírito, para decidir qual seria a maior e a mais forte: se a energia do seu caráter ou se a violência dos desgostos que a perseguiam.

Tão grande foi a surpresa de Teobaldo, que ele não encontrou para receber a mulher senão o gesto e a exclamação inconscientes do seu pasmo.

Venho pedir-lhe um favor, disse ela.

- Um favor?

- Sim. É que liquide quanto antes as suas contas com meu primo.

- E por quê?

- Porque assim é preciso.

- Mas a razão porque é preciso?

- Não posso dizer, mas afianço que é preciso liquidar as suas contas com aquele homem.

- Tem a senhora alguma razão de queixa contra ele?

- Nenhuma.

- Por acaso ter-lhe-ía seu primo falado a respeito da minha dívida?

- Não; asseguro-lhe, porém, que é de todo interesse para nós livrarmo-nos dele.

- Sim, mas a senhora há de confessar que eu tenho o direito ao menos de querer saber o motivo desta sua exigência.

- E eu não lhe posso dizer qual é o motivo.

- Então por Que veio me falar nisto?

- Porque era meu dever, O senhor no fim de contas, é meu marido e eu tenho obrigação de zelar pelos seus interesses.

- Obrigado, confesso-lhe, porém, que os obséquios dessa ordem não trazem a menor vantagem!

- Não faço um obséquio; cumpro com o meu dever, já disse.

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