Esta prodigiosa faculdade de tudo assimilar sem nada digerir era tamanha em Teobaldo que muita vez discutindo com o Coruja, ele apanhava no ar os argumentos deste e apresentava-lhes em defesa própria, já transformados e desenvolvidos. E o mais curioso é que, posto André estivesse senhor da matéria em discussão e arrazoasse-la conscienciosamente, citando autores que o outro desconhecia, era sempre levado à parede e tinha de render-se, porque o contendor com sua afoita verbosidade lhe arrebatava todas as armas.
Seu espírito, de uma agilidade acrobática, saltava de um ponto a outro, fazendo as mais difíceis cabriolas; tão depressa Teobaldo se sentia mal seguro em um terreno, puxava logo a conversa para o lado oposto, sem que aliás ninguém desse por isso, tão presos ficavam todos à sonora corrente de suas palavras. E, sempre irrequieto, sempre em constante fermentação, aquele sutil e maleável espírito a tudo se amoldava, em tudo se informava, torcendo, singrando e penetrando por caminhos da ciência inteiramente desconhecidos para ele. E às vezes, sem conhecer de certos autores mais do que o nome, citava-os de todas as nacionalidades, de todas as classes e de todas as épocas.
Os ignorantes, ouvindo-o, comiam-no por sábio; um sábio se o ouvisse, havia de julgá-lo um louco.
Afonso de Aguiar não o considerava nenhuma dessas coisas; mas bem lhe conhecia a parte vulnerável do caráter - a vaidade e, por ai contava invadir-lhe o coração e apoderar-se dele.
E, no empenho de conquistar a confiança de Teobaldo, já por fim tanto lhe glorificava os dotes intelectuais e as simpáticas exterioridades de sua pessoa, como ainda lhe gabava as qualidades morais.
- Que coração! segredava ele a todo aquele que pudesse levar suas palavras ao marido de Branca. Que coração de ouro! É capaz de despir a camisa para socorrer a um pobre! Da esmolas, sem contar o dinheiro e, dantes, quando não tinha para dar, sofria mais do que o próprio necessitado. Em solteiro, muita vez empenhou o relógio só para servir a algum amigo; muita vez teve de pedir emprestado dinheiro, que não era para ele; muita vez pagou dívidas, que não eram suas!
E o Aguiar, abaixando a voz, acrescentava quase sempre:
- E sem precisar ir muito longe, aí está o fato do Coruja...
- Que Coruja? perguntavam.
- Ora! aquele rapaz que ele tem em casa, um pobre diabo, sem eira nem beira, um tipo esquisitório, que teria levado o diabo, se não fosse ele!
Então passava a contar uma história a respeito do Coruja, e, sempre engrandecendo as qualidades do outro, resumia:
- Pois é como digo! E note-se que ele faz tudo isso somente porque o tal sujeito foi seu companheiro de colégio!
Esta calculada e constante glorificação de Teobaldo, feita pelo suposto amigo, foi afinal encontrando eco nos grupos em que ela caía, e o festejado esposo de Branca viu surgir aos poucos em torno de seu nome uma grande reputação de homem ilustrado, de homem de talento e de homem generoso.
Isto, ligado à sua fama de rico, era tudo quanto ele desejava.
E mais: todas as vezes em que Teobaldo ouvia elogiar o seu procedimento para com o Coruja e tentava provar que o não merecia, tanto mais se assanhavam os propagadores de sua fama e tanto mais o fato era engrandecido e apregoado.
Um deles exclamou cheio de entusiasmo:
- Além de tudo é modesto! Que homem! Nega a pé junto a esmola que faz como qualquer negaria um obséquio recebido que o humilhasse!
Branca, porém, revoltava-se com tamanha injustiça feita ao melhor amigo do seu Teobaldo. Este, pensava ela, tem de sobra com que merecer elogios e não precisa enfeitar-se com as penas que lhe não pertencem!
Sofreu, pois, uma enorme decepção, quando, falando a esse respeito ao esposo e dizendo que achava indispensável esclarecer bem aquele ponto aos olhos de todos, lhe ouviu declarar frouxamente:
- Não sei, minha flor, não acho muito prudente agitar essa questão mais do que já está... Com semelhante resolução talvez apenas conseguíssemos chamar sobre mim algum ridículo... e bem sabes que um homem na posição em que me acho deve temer o ridículo sobre todas as coisas!.
Branca não opôs uma palavra às do marido, mas intimamente sentiu estremecer, posto que de leve, o entusiasmo pelo seu ídolo, pelo seu amado, pelo seu esposo, pelo seu Deus: entusiasmo que ela até aí mantinha sereno e inalterável como uma estátua de ouro.
Foi o primeiro ponto escuro que descobriu no astro, e procurou logo enganar a vista, fazendo por convencer-se de que "aquilo" não passava de "uma venial fraqueza".
Ah! mas a primeira mancha nunca vem só, e Branca tinha de sofrer ainda outras decepções mais amargas e mais difíceis de esquecer!
Todavia, uma vez ao lado do Coruja, não se pode dominar e falou-lhe abertamente sobre o fato.
Ah!... respondeu o professor sem se alterar; eu já sabia... fui até já várias vezes interrogado sobre isso...
- Como? Pois já chegaram a lhe falar?.
- Sim, alguns amigos de Teobaldo.
- E o senhor explicou tudo, não é verdade?
- Não, não valia a pena... Que mal pode haver em que suponham semelhante coisa? Muito mais quando isso tem o seu fundo de verdade!...
- De verdade? Pois o senhor quer me convencer também a mim de que Teobaldo é quem lhe fornece os meios de subsistência?
- Ora, se os não fornece agora, já o fez por muito tempo, e quem sabe se não virei ainda a precisar disso?...
Branca, defronte destas palavras, ficou ainda mais surpresa de que quando ouviu as próprias do marido. Ela sabia já que o Coruja era um singular exemplo de abnegação e de boa-fé, mas nunca o julgou capaz de tanto.
E seu espírito, ainda puro, religioso e casto, principiou instintivamente a voltar-se mais e mais para aquela figura feia, resignada e melancólica, aquele pobre diabo carcomido pelo trabalho e pelo sacrifício, que todos repeliam, e para o qual ninguém sabia ter uma única palavra de amor e consolação.
V
A segunda decepção destinada a Branca consistiu no seguinte: Teobaldo, no fim de dois anos de casamento, já não tinha pela esposa o primitivo desvelo, se bem que ela, longe de perder alguma coisa dos seus encantos, ia-se fazendo cada vez mais sedutora.
Não deixou todavia a pobre senhora transparecer o seu ressentimento e, convencida de que havia de reconquistar o marido à força de carinhos, refinou na ternura e na meiguice. Mas em breve compreendeu que de nada aproveitariam tais esforços., porque no espírito egoísta daquele homem a inconstância era talvez a face mais desenvolvida. Foi terrível a sua desilusão, quando de veras se convenceu de que o vaidoso pensava muito mais em si do que nela.
- Agora, dir-se-ia até que ele apenas a estimava como a um precioso objeto de luxo que ao amor-próprio de qualquer desvanecera. Já não era o afeto, nem dedicação, nem respeito, mas simples orgulho de possuir inteira aquela mulher maravilhosa, que todos lhe invejavam sem ânimo de cobiçá-la. Teobaldo gozava muito mais com vê-la resplandecer em meio dos salões, crivada de olhares deslumbrados, do que com tê-la a sós, na intimidade do lar, palpitante de amor nos braços dele.
Branca percebeu tudo isso e começou a sofrer em silêncio; ao passo que o marido, de tão preocupado consigo mesmo e com as suas ambições, não dava sequer pelo estado lastimável em que ela se abismava. Às vezes, durante o almoço, enquanto Teobaldo comia, sem despregar os olhos e a faca do jornal em que vinha alguma coisa a respeito dele, a mísera esposa o fitava longamente, com a cabeça apoiada em uma das mãos, e toda ela enlanguescida e triste, como a planta mimosa que vai fenecendo à míngua de cuidados.
E suspirava.
Ah! mas Teobaldo já não sabia ouvir estes suspiros e, ao erguer-se da mesa, distraído e apressado pelos seus interesses exteriores, também não sabia adivinhar nos olhos de Branca as lágrimas que tinham de rebentar daí a pouco, logo que ele transpusesse a porta da rua.
Uma ocasião, por volta de um baile em que ela mais do que nunca fez sobressair os seus encantos e as suas graças, o marido tomou-a frouxamente nos braços e pousou-lhe na fronte um beijo, em que já não havia a febre dos outros tempos.
Este beijo desnaturado e frio foi o bastante para fazer transbordar a grande tempestade interior que Branca há tanto e com tamanho custo reprimia. Ela deixou pender a cabeça sobre o colo do marido e abriu em uma explosão de soluços.
Teobaldo surpreendeu-se, sem compreender aquele súbito transbordamento de lágrimas.
- Por que choras, filhinha? perguntou ele, procurando ameigá-la.
A esposa não respondeu, porque o pranto não Iho permitia.
- Vamos! Não chores desse modo!... Se alguma coisa te aflige, dize-me com franqueza o que é.
Ela, sem poder falar, meneava a cabeça negativamente, a esconder o rosto como que envergonhada por se deixar trair, pelos seus soluços.
- Perdoa... disse afinal, não me pude conter. Perdoa.
- Mas qual é o motivo dessas lágrimas?
- Tu bem sabes por que choro.
- Eu?... Juro-te que não sei...
- Oh! tu me fazes sofrer, Teobaldo!
- Eu?!
- Sim! Já não és o mesmo para mim...
- Ora essa! Acaso terei, sem saber, cometido alguma coisa que te desgostasse?... Já deixei qualquer dia porventura de tratar-te com a mesma delicadeza e com a mesma dedicação que sempre me mereceste?...
- Oh, não! não me queixo disso! És cada vez mais delicado e mais atencioso para comigo.
- Então?
- Mas é que já não me amas como dantes! Acho-te frio, indiferente aos meus carinhos; posso dizer que me suportas com dificuldade quando insisto em ficar perto de ti,
- Ilusão tua!
- Não, não me iludo! Já não és o mesmo! Dantes querias ter-me ao teu lado, quando trabalhavas horas esquecidas no gabinete; fazias-me ir buscar na estante um livro ou outro de que precisavas para consultá-lo; fazias-me procurar no dicionário o termo que te faltava na ocasião; lias-me sempre o que escrevias, consultavas a minha opinião, discutias comigo, prendias-me enquanto durasse o teu serviço, pagando-me depois a beijos todo o prazer que eu punha em estar contigo. Dantes não tinhas fora de casa uma conversa, vem encontro menos comum, uma impressão qualquer, que não me viesses logo transmiti-los; tudo me contavas; dizias-me todos os passos de tua vida, e eu podia, hora por hora, instante por instante, afinar meu coração pelo teu; e agora já nada me contas do que fazes; já não me reclamas quando vais para a tua mesa de trabalho; já não me passas o braço na cintura e não me levas contigo; já não encontras o que me dizer; já não achas graça em coisa alguma que eu faço; vosso ir para o piano, posso cantar os mesmos romances que dantes estimavas tanto; e nada te comove, e nada te prende, e nada te chama a atenção! Teu pensamento, tua alma, está toda lá fora; aqui só vens para preparar novos elementos de popularidade! Agora ligas mais importância à opinião do primeiro que se te apresenta do que ligas à minha opinião e às minhas palavras!
terça-feira, 8 de setembro de 2009
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