segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Leitura 22

Ela, muita vez, ao vê-lo triste e apoquentado da vida, chamava-o para junto de si e procurava animá-lo com boas palavras de interesse. Dizia-lhe por exemplo:

- Então, meu amigo, que ar terrível tem hoje o senhor.. . Veja se consegue enxotar os seus diabinhos azuis e leia-me alguma coisa. Olhe! dê-me notícias de sua obra, diga-me como vai a sua querida história do Brasil... Terminou afinal aquele episódio dos guararapes, que tanto o preocupava? Vamos! converse!

Coruja sorria, muito lisonjeado por debaixo da sua crosta de elefante, mas remancheava para não mostrar o que escrevera.

- Ora... aquilo era um trabalho tão frio, tão desengraçado, que não podia interessar o espírito de uma senhora.

Contudo, se Branca insistia, ele acabava por ir buscar os seus caderninhos de apontamentos históricos e lia-lhe em voz alta aquilo que dentre eles se lhe afigurava menos insuportável.

Eram fatos colhidos por aqui e por ali, em serões da Biblioteca Nacional, escritos num estilo compacto, muito puro, mas sem belezas de colorido nem cintilações de talento.

O que lhe falecia em arte e gosto literário sobrava-lhe não obstante em fidelidade e exatidão; as suas crônicas eram de uma frieza de estatística, mas sumamente desapaixonadas, simples e conscienciosas. Entre aquela infinidade de páginas, abarrotadas de letrinha miúda e muito igual, não havia um só adjetivo de luxo ou uma frase que não fosse de primeira necessidade.

Teobaldo gostava de fazer pilhéria com os alfarrábios do amigo; mas, passando a falar sério, citava-os com respeito, se bem que deles não conhecesse uma linha ao menos.

- Obra de fôlego! dizia, engrossando a voz; e afirmava que no meio de toda aquela papelada havia coisas magníficas.

Quando Branca estava aborrecida, durante pequenas viagens comerciais do marido, André, em lugar da enfadonha historia, lia-lhe alguns dos seus poetas mais prezados, clássicos na maior parte, entre os quais se destacavam Camões e Garrett, por quem ele sentia verdadeiro fanatismo. Outras vezes tomava da flauta e punha-se a tocar para a distrair; quase nunca, porém, o conseguia, porque o desgraçado tocava mal e sem inspiração.

Para ser agradável a Branca, para entreter, ele estava sempre disposto a tudo, menos a apresentar-se na sala de Teobaldo em noites de recepção ou acompanhá-los ao lírico. Adorava a boa música, mas não podia ajeitar-se com o frenético borborinho das platéias e a nervosa vivacidade dos saraus. Quando lhe dava na cabeça para ver uma ópera, o que era raríssimo, comprava um bilhete de torrinha e metia-se lá em cima, muito só, muito escondido de todos e pedindo a Deus que ninguém o notasse.

Entretanto o que Branca sentia por ele era menos estima do que uma certa espécie de condolência, que todo o coração feliz e farto costuma voltar aos desfalecidos da fortuna. E, se por vezes brilhava nas suas palavras ou nos seus gestos qualquer centelha de afeição, seria talvez alguma gota escapada do grande transbordamento do seu amor pelo marido; Coruja, por muito ligado a este, participava do luminoso eflúvio.

Tanto assim que, entre todas as relações de Teobaldo, antigas ou recentes, era essa a única que merecia da formosa criatura semelhante distinção; as outras, nem isso tinham.

O velho Hipólito e mais a mulher causavam-lhe tédio; ele com a sua eterna mania de criticar a Deus e a todo o mundo, com sua avareza mal disfarçada e com a sua proa de ricaço; &a com aquele gênio de querer governar sempre e dirigir a vida das pessoas com quem se dava e querer impor a sua opinião a propósito de tudo.

Quanto ao Sampaio, esse felizmente poucas vezes aparecia e outro rastro não deixava de sua passagem além de meia dúzia de banalidades e algumas pontas de cigarro lançadas fora do cinzeiro. Era porco.

Depois do Coruja, o mais freqüentador da casa era o Afonso de Aguiar. Apresentava-se regularmente nos dias de recepção e surgia uma vez por outra à hora do jantar, sem ser esperado. A sua atitude ao lado da mulher do amigo, na aparência, a melhor e mais correta que se poderia desejar: chegava com o seu passinho miúdo, um sorriso de bom rapaz à superfície dos lábios, e ia logo apertar-lhe a mão com todo o respeito, perguntando-lhe cheio de doçura "como passava a sua querida prima e em seguida ia ter com Teobaldo e punha-se, até à ocasião de sair, a conversar com este sobre negócios e um pouco sobre política.

Estas conversas tanto e tanto se repetiram e foram por tal forma tomando um caráter expansivo e intimo, que Teobaldo, contra todo o seu sistema de atração, já de último lhe confiava algumas particularidades da sua vida comercial. O outro, cuja posição na praça era bastante próspera e secura, animava-o com palavras de amigo e prometia estar sempre ao lado dele e ao seu dispor, quando por acaso Teobaldo encontrasse alguma séria dificuldade na sua carreira. Independente disso parecia admirar-lhe por tal modo o tino e o talento, que ao lado dele se fora aos poucos convertendo em um desses louvaminheiros constantes, que em geral acompanham os homens excepcionais, e para os quais reservam estes uma certa proteção amistosa, cheia de apreço e reconhecimento, mas com quem, no fundo, são de uma indiferença à toda a prova.

Como todo homem egoísta e vaidoso, Teobaldo gostava de ouvir elogios, viessem esses de quem quer que fosse, e o finório do Aguiar, compreendendo isso mesmo, não perdia ocasião de lhe queimar incenso defronte do nariz.

Tudo, por mais simples, que fazia o marido de Branca, representava para o velhaco novos pretextos de entusiasmo. Um discurso à sobremesa ou em alguma outra reunião, um parecer em qualquer questão comercial, um artigo na imprensa, tudo era motivo de louvor e pasmo.

- Não há outro! exclamava o primo de Branca. Não há um segundo Teobaldo! O ladrão reúne em si todas as qualidades que se podem desejar em um homem! Maneiras, talento, caráter, figura, tudo o que há de bom, de belo e de grandioso! E demais um verdadeiro fidalgo: ninguém como ele para saber cativar a quem quer que seja; para cada pessoa tem sempre um assunto especial que a interessa particularmente, que a prende. Se está defronte de um ministro, só conversa em política e, ouvindo-o, ninguém acreditaria que ele durante toda a sua vida, tivesse outra preocupação além da política; se fala a um homem de ciência, faz logo pasmar a todos com a sua despretensiosa erudição; se a pessoa com quem ele conversa é um artista, um músico, um poeta, um pintor ou um ator, então a sua palavra privilegiada chega a causar delírios de entusiasmo: as idéias, as frases, as belas imagens literárias, saem-lhe da boca em borbotão. E note-se que tão facilmente discorre pela arte moderna, como remonta à de três séculos atrás; tão à vontade se acha falando sobre os pintores da renascença, como falando da escultura pagã, como do teatro grego ou da poesia hebraica. Seu milagroso talento, sem fazer especialidade de coisa alguma, abrangeu tudo e de tudo se apoderou. Nada do que existe no orbe intelectual escapou à sua grande faculdade de apanhar de um salto aquilo que os outros levam muitos anos para conquistar.

Com a mesma facilidade com que compõe uma valsa, escreve uma poema, desenha uma paisagem, faz um discurso, escreve uno artigo político, engendra um folhetim de crítica, canta uma parte de barítono, sustenta a conversação de uma sala, dirige um cotilhão, inventa um feitio de chapéu para senhora, um prato esquisito para o jantar e tão pronto está para fazer uma lista dos melhores vinhos do mundo, como para fazer a classificação de todos os sistemas filosóficos até hoje conhecidos.

Teobaldo, com efeito, era um desses espíritos que tanto tem de inconstantes e fracas para aprofundar e conservar qualquer coisa, como de prontos e fortes para assimilar o que passa defronte deles com a carreira mais vertiginosa. Tudo conseguia apanhar em um lapso instantâneo, mas não conseguia estudar seriamente qualquer coisa; conhecia tudo e nada conhecia ao mesmo tempo, porque tudo percorrera de passagem; era enfim um homem superficial, um habilidoso, incapaz de qualquer trabalho de fôlego ou de qualquer concepção verdadeiramente individual, mas como ninguém apto para imitar em um relance tudo aquilo que os outros, os especialistas, conceberam e aperfeiçoaram durante uma existência inteira.

Por várias vezes representara em teatrinhos particulares e tão bem copiava o ator que ele escolhia para modelo, que chegaram a julgá-lo um gênio na arte dramática; quando pela primeira vez apareceu na corte o introdutor da copofonia, Teobaldo arranjou logo uma dúzia de copos de cristal, afinou-os e, tanto fez que, no fim de alguns dias já tocava, não com a perfeição do outro, mas enfim tocava, e isso era o bastante para satisfazer a sua fantasia. Depois de ver o Hermann, entregou-se durante três meses à mania da prestidigitação e conseguiu fazer maravilhas nessa especialidade; vendo um célebre jogador de bilhar, que em certa época se andava mostrando ao público do Rio de Janeiro, quis competir com ele e conseguiu fazer trezentas carambolas de uma tacada.

Para estas passageiras manifestações de habilidade, incontestavelmente era como ninguém. Entendia um pouco de tudo; sabia tirar retratos fotográficos, jogar todos jogos de cartas e mais os de exercício, contando a esgrima, o tiro ao alvo, a péla, a bengala, o bilboquê; e cada novidade que surgia, fazendo impressão no público, encontrava nele o maior e também o menos constante dos entusiastas.

Assim, durante algum tempo, só o ouviram falar em magnetismo, e parecia resolvido a não pensar em outra coisa, daí em diante; depois veio o espiritismo, e Teobaldo durante outro período foi o mais fervoroso discípulo de Allan Kardec; depois passou a dedicar-se à astronomia; depois à maçonaria e, entre os vinte e os trinta anos, pertenceu sucessivamente àquilo que mais estivesse em moda. Foi materialista com Buckner; foi ateu com Renan; socialista com Saint-Beuve; evolucinista com Spencer; psicólogo com Bain; positivista com Littré e Augusto Comte; mas nenhum deles conseguiu estudar a sério; entusiasmava-se momentaneamente e de cada filósofo conhecia apenas os livros mais espetaculosos, mais vulgares, sem nunca entrar pela obra profunda dos sábios. De Buckner, por exemplo, conhecia tão somente Força e Matéria, de Renan a Vida de Jesus, de Jacolliot a Bíblia na Índia, e assim por diante; notando-se que de muitas obras conseguia ler apenas uma pequena parte, ou alguma notícia crítica, ou qualquer citação, ou um simples a-propósito.

No entanto falava de todas elas, nomeando autores modernos e antigos, discutindo-os, atribuindo-lhes até pensamentos e frases que jamais lhes pertenceram, chegando a sua temeridade ao ponto de citar em falso ou de orelha as mais respeitáveis autoridades, para justificar o que ele na ocasião negava ou afirmava.

Um comentário:

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