sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Leitura 33

- Mas, se a senhora vem me dizer isto, é que alguma coisa de extraordinário se passou aqui! Ou eu já não tenho também o direito de saber o que vai pela minha casa?

- Oh! tem todo o direito; entendo, porém, que não é de minha obrigação dar-lhe contas do que vejo e observo. Se o senhor quer estar ao par do que se passa em sua casa, faça por isso, que não fará mais do que o seu dever.

- Engana-se; daquela porta para dentro é à senhora que compete zelar pelo que se passa nesta casa.

- E por isso venho prevenir-lhe de que é de toda a conveniência liquidar quanto antes os seus negócios com meu primo.

- Sem apresentar a razão por que.

Ela não respondeu dessa vez e fez menção de sair.

O marido deteve-a.

- E a senhora pensou um instante nas conseqüências que pode ter esta sua meia denúncia?

- Já pensei tanto quanto devia.

- E não calculou até que ponto elas poderiam chegar?

- Calculei.

- E não saberá porventura que nas condições apertadíssimas em que me acho, as suas palavras só me podem servir para mais atrapalhar a minha vida e aumentar o desespero em que ando?

- Sei apenas que é preciso fazer o que lhe disse.

- Pois aponte-me os meios para isso! Diga-me onde devo ir buscar dinheiro para fazer face a uma dívida em que eu não pensava agora ...

- Os negócios que se tratam daquela porta para fora pertencem-lhe, como de portas para dentro pertencem a mim zelar por esta casa.

E, tendo dito isto, retirou-se do gabinete do esposo ainda mais fria e sobranceira do que se apresentara.

Foram inúteis todos os esforços que Teobaldo empregou para detê-la ainda.

XVI

No dia seguinte, ela procurou de novo o marido para saber se ele estava ou não disposto a tomar qualquer deliberação a respeito dos negócios do Aguiar.

Teobaldo respondeu já meio impacientado:

Que o deixassem em paz e não o estivessem apoquentando com tolices! Já bastante tinha com que se aborrecer e não era pouco! A mulher, se queria ser atendida, que diabo! dissesse a razão que levava a semelhante exigência e, se não estava resolvida a desembuchar, que não lhe desse mais uma palavra sobre o tal assunto!

Branca, todavia, hesitou ainda. Seu espírito, aliás tão forte para entestar com outras provações, seu espírito orgulhoso e sempre vencedor, quando abria luta contra a bestialidade da carne, acobardava-se agora defronte da hipótese de um escândalo social.

- Um escândalo! Que horror!

Não podia conformar-se com a idéia de que seu nome fosse correr as ruas, de boca em boca, despertando em uns a curiosidade e o direito de desejá-la também e em outros a simples vontade de rir; não podia aceitar enfim que um fato de sua vida caísse no domínio público e servisse de divertimento à multidão, igualando-a com qualquer artista tapageuse ou com qualquer meretriz de espavento, que precisa do escândalo para não ser esquecida.

Via-se entalada por um dilema, cuja saída havia de ser fatalmente escandalosa, porque das duas uma: ou tudo confessava ao marido e a questão daria um escândalo doméstico; ou deixava que a vingança do Aguiar corresse à revelia e neste caso o escândalo teria um caráter todo comercial.

Preferia o último. Mas desde então terrível sobressalto apoderou-se dela e começou a crescer à proporção que os dias se passavam; afinal era já um martírio de todo o instante urna agonia sem tréguas, que lhe não deixava um momento de repouso.

Nesta conjuntura lembrou-se de André e resolveu contar-lhe tudo.

E tal idéia lhe chamou logo aos lábios um suspiro, como se ela, só por si, fora já uma consolação completa. Entretanto, não podia a pobre senhora explicar qual era o estranho motivo dessa confiança que lhe inspirava o Coruja.

- Que mais podia esperar dele, além de conselho ou algumas palavras de animação? O fato, porém, é que Branca só com a idéia de lhe confiar aquilo que ela não quis confiar ao marido, sentiu-se menos oprimida e mais sobranceira ao perigo.

Uma inexplicável esperança, uma espécie de fé a arrastava para junto daquele homem honrado, daquele anjo de bondade que sempre encontrava meios de proteger todo o infeliz que ia procurar abrigo à sombra das suas asas.

Havia um quer que seja de religioso naquela confiança de Branca por André; ela esperava dele a proteção como os crentes quando se dirigem a Deus, sem mesmo indagar quais os meios que este empregará para isso.

E, nesta ilusão, tinha de si para si que chegaria ao Coruja tão facilmente como uma devota supõe chegar ao objeto de sua crença; mas, uma vez ao lado dele, sentiu-se vazia, sem encontrar o que dizer, sem uma palavra para principiar.

André estranhou-a e quedou-se igualmente mudo.

Houve um silêncio, durante o qual Branca de olhos baixos; torcia e destorcia o debrum de seu casaquinho de musselina preta, ao passo que ele, sem se animar a encará-la, olhava para os lados, meneando o corpo da direita para a esquerda.

- A senhora, se não me engano, balbuciou afinal o pobre André, creio que disse ter alguma coisa a comunicar-me. Não é exato?

É exato... fez Branca, tornando-se ainda mais pálida.

- Pois então...

- Mas é que..

- Tenha a bondade de falar com franqueza...

- Sim, eu, ouça-me... eu...

E ela não achava ânimo.

- Então!

- Vai ouvir tudo. Aguiar, sabe?...

- Seu primo?

- Sim; o Aguiar tem procurado todos os meios de me seduzir.

André sorriu lividamente. Ela acrescentou:

- Não me deixa há muito tempo, e, se bem que nenhum perigo houvesse nisso até agora, porque sou bastante honesta e virtuosa para não temê-lo... receio todavia quê...

- Quê?...

- Que ele, aproveitando-se das nossas circunstâncias atuais, se lembre de fazer-nos alguma maldade...

- Mas como?

- Ora! ele é credor de Teobaldo.

- Oh! é impossível, porém, que aquele rapaz leve a esse ponto semelhante perseguição. Não creio que haja no mundo um homem capaz disso!

- É porque supõe os outros por si.

- E Teobaldo? Que diz ele a respeito disto?

- Nada, porque nada sabe.

- Pois a senhora não lhe contou tudo?

- Não.

- Por quê?

- Receando um escândalo.

- Ah! E o que tenciona fazer agora?

- Não sei, e é isso justamente que eu desejo ouvir de sua boca. O senhor, como o modelo dos homens honestos, deve saber aconselhar-me, dirigir os meus passos. Quero evitar um escândalo e quero conservar-me imaculada; diga-me: o que compete fazer?

- Mas...

- Oh! não hesite por amor de Deus! É impossível que o senhor não tenha uma boa resposta para me dar. É impossível que o senhor, tão bom, tão amigo dos outros, não encontre meio de me valer, quando eu venho pedir o seu auxílio.

Coruja não respondeu e pôs-se a coçar a cabeça.

- Então? disse ela. Vamos, fale. Diga-me alguma coisa!

E Branca sacudiu-lhe o braço.

Ele ia responder afinal, quando foram interrompidos por um criado, que vinha anunciar o Aguiar.

- Ainda?! exclamou Branca, deveras surpreendida. Pois meu primo tem ainda o atrevimento de voltar?

- Receba-o, disse o Coruja enfim.

E acrescentou, encaminhando-se para uma porta que havia na sala:

- Eu fico aqui escondido por detrás desta cortina. Receba-o sem o menor escrúpulo, porque a senhora não está só.

- Faça entrar meu primo, ordenou Branca ao criado.

Daí a pouco Aguiar estava defronte dela.

- Que deseja? perguntou a senhora, vendo que a visita não se resolvia a falar.

- Venho receber a confirmação do que há dias a senhora me disse.

- Ora essa! De que espécie de confirmação fala o senhor?

- Da confirmação das suas últimas palavras. Não quero que me pese na consciência a menor sombra de remorso pelo que vou fazer...

- Contra quem?

- Contra a senhora e contra seu marido.

Branca, por única resposta, apontou-lhe a porta, como da primeira vez.

- Pense um instante! disse ele ainda. Veja bem o que faz!...

- Rua!

- Branca!

- Saia! Já lhe disse!

- Mas repare que a senhora me obriga a ser pior do que sou!

- Se não sair, mando-o despejar lá fora pelo criado!

- Sim?! Pois não sairei!

- Hein?!

- Não saio, porque não quero!

E, pondo o chapéu na cabeça:

- Já não se trata aqui de pedir amor em troca de amor; agora trato apenas de exigir o que me compete de direito! Quero para aqui o que me devem!

- Miserável!

- Oh! pois não! a senhora entende que me deve humilhar a seu gosto e eu devo ficar de cabeça baixa! Engana-se! Por bem sou capaz de todos os sacrifícios; por mal sou capaz de todas as crueldades. Já não é a recusa do seu amor o que me revolta; farte-se com ele quem quiser; mas o seu atrevimento, a sua insolência, o seu orgulho mal entendido!

Branca, lívida e trêmula, mas sem dar uma palavra, encaminhou-se para a mesa onde estava o tímpano, com a intenção de chamar um criado.

- É inútil! observou Aguiar, cortando-lhe o passo; é inútil fazer vir alguém, porque eu não sairei. Já não é com a senhora que tenho de me entender e sim com o seu marido!

E, sacando do bolso algumas letras:

- Exijo o pagamento destas letras ou elas serão protestadas!

Nisto, porém, afastou-se o reposteiro do quarto, onde estava escondido o Coruja, e Aguiar viu com espanto surgir o vulto maltrapilho do professor e encaminhar-se tranqüilamente para ele com um terrível sorriso nos lábios.

A sua primeira menção foi de sair, mas o outro o deteve com um gesto cheio de delicadeza.

- Espere, disse, o senhor vai imediatamente ser embolsado do que lhe deve o marido desta senhora. Fui encarregado por ele de tratar disto.

O Aguiar mediu-o de alto a baixo com um olhar em que transparecia mais decepção do que altivez. André, sem se alterar. afastou-se e voltou depois com um grosso maço de dinheiro.

- Faça o favor de verificar se está certo, acrescentou.

E, como o outro hesitasse ainda:

- Então, vamos, confira!

E, para o animar, principiou ele próprio a contar o dinheiro, nota por nota.

- Bem! fez, logo que estava a soma conferida; creio que agora já ninguém lhe deve nada nesta casa. Pode retirar-se.

3 comentários:

  1. QUERIDO ALUNO, AO POSTAR O SEU COMENTÁRIO, NÃO DEIXE DE COLOCAR NOME, NÚMERO E SÉRIE.

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  2. É engraçado ver a situação da Leonília, desespera pelo amor não correspondido de Teobaldo tentando surpreender Teobaldo! Parece que nunca desiste desse Romance, se todos tivessem a mesma disposição de amar o próximo da tal maneira, nós não conheceríamos a palavra violência!

    Nome: Narciso Faustino Mendes Nº25 6ªC

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