quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Leitura 38

Mas a opinião geral e mais corrente a respeito do marido de Branca era-lhe de todo o ponto favorável. Davam-lhe grande talento, vasta erudição, caráter firme e sentimentos patrióticos; quer dizer: quase todos atribuíam-lhe justamente aquilo que lhe faltava, e ninguém, menos a esposa, as duas únicas qualidades intelectuais que ele tinha deveras desenvolvidas - habilidade e bom gosto.

E foi só com a sua habilidade e com o seu bom gosto que o pândego chegava àquela altura.

Todavia, o Coruja, meio atordoado pela confusão do povo e pelo desacordo das opiniões que ouvira a respeito do amigo, atravessou a chácara e subiu a escada que ia dar à sala.

- Ainda não pode entrar! gritou-lhe asperamente um ordenança que aí se achava.

- Oh, senhor! mas não era preciso dizer isso deste modo.

O ordenança mediu-o de alto a baixo com um gesto de superioridade e virou-lhe as costas desdenhosamente.

- Olha que impostor! disse consigo o Coruja, e perguntou quando seria possível falar a Teobaldo.

- A quem?!

- Ao ministro.

- Ah! Logo mais! Daqui a pouco franqueia-se a casa ao povo.

- Está bom; eu espero.

- Lá embaixo! Espere lá embaixo!

Ouvia-se vir de dentro da casa um rumor alegre e quente de vozes de homens e risos de senhoras; alguma coisa que dava logo a idéia de uma existência aristocraticamente feliz. Pelo rumor daquelas vozes, pelo tilintar daquela alegria bem educada, pelo aspecto exterior da casa, com as suas cortinas muito claras, com a sua chácara e as suas escadas de pedra branca imaginava-se logo uma boa mesa servida com porcelanas e cristais de primeira ordem; imaginava-se a confortável mobília, as largas cadeiras estofadas, a voluptuosa cama de molas de aço, o banho perfumado, as roupas de linho puro.

E o Coruja, sem que aliás a menor sombra de inveja lhe entrasse no coração com a idéia de tudo isso, nunca se sentiu tão desamparado, tão só no mundo, como naquele momento.

Uma agonia surda e duvidosa apoderou-se dele.

E foi com a garganta cerrada por um punho de ferro que o mísero desceu lentamente a escada, arrastando de degrau em degrau o seu pé aleijado pelo tiro.

Ao chegar embaixo reparou que um grito de aclamação partia de todos os lados; voltou-se e notou que Teobaldo acabava de assomar ao balcão da janela seguido pela esposa.

E o Coruja notou igualmente que o amigo não parecia um simples ministro, mas um príncipe. Estava belo com o seu porte altivo e dominador; com o seu grande ar de fidalgo que exerce a delicadeza, não em honra da pessoa a quem se dirige, mas em sua própria honra. Iam-lhe muito bem os fios de cabelo branco que agora lhe prateavam a cabeça e a barba, dando-lhe à fisionomia uma expressão ainda mais distinta e mais nobre.

Abriram-se as portas da casa ao povo que ia cumprimentá-lo, e as salas foram invadidas, enquanto a banda de música continuava a tocar.

Havia um grande número de senhoras lá dentro e, Branca, ao lado de D. Geminiana e mais do velho Hipólito, que se tinham apresentado de véspera, fazia as honras da festa, sem alterar, no meio daquela tempestade de louvor e adulação que cercava o marido, o seu frio riso de estátua.

Só ela parecia não tomar parte moral no grande entusiasmo de toda aquela gente.

Coruja ouviu de fora os hurras dos brindes e os vivas levantados a Teobaldo, ao partido conservador e ao monarca; não se sentiu, porém, com ânimo de entrar e resolveu ir-se embora.

Saiu triste, profundamente triste, sem contudo saber a razão dessa tristeza. Um vago desgosto pela vida o acabrunhava e consumia; um tédio enorme, uma espécie de cansaço de ser bom, levava-o sombriamente a pensar na morte.

É que em torno de seus passos havia encontrado sempre e sempre a mesma ingratidão ou a mesma antipatia por parte de todos, ou a mesma maldade por parte de cada um.

Agora daria tudo para poder cometer uma ação má, como se por essa forma o seu coração pretendesse repousar um instante.

E, por todo o caminho, notou pela primeira vez os encontrões que lhe davam, as caras más que lhe faziam os transeuntes, a falta de consideração que todos lhe patenteavam.

Observou que ninguém lhe cedia a passagem na escada. Um homem em mangas de camisa dera-lhe um empurrão e, ainda por cima, lhe gritara: - "Que diabo Está bêbado?!" Um padre, querendo passar ao mesmo tempo que ele, dissera-lhe: "Arrede-se!" E um menino de jaquetinha e calça curta chegara a obrigá-lo a ceder-lhe o passo. Ao atravessar a rua, quando ia chegar à casa, uma carruagem que passava a todo trote, levantou com as rodas um jato de lama, que se foi estampar na cara dele.

Era o Afonso de Aguiar quem ia dentro desse carro. Voltara, afinal, ao Brasil.

E, só aquele fato de ver o Aguiar, sempre feliz, rico, rejuvenescido com o passeio à Europa, ainda mais o fez entristecer.

Coruja recolheu-se, finalmente, foi para o seu quarto, que era o pior da casa de D. Margarida, fechou-se por dentro e deixou-se cair em uma cadeira, a soluçar como uma criança que não tem pai nem mãe.

XXIII

E de então em diante ia ficando cada vez mais triste, mais concentrado e mais esquivo de tudo e de todos.

Não tinha afinal um canto seguro, no qual, fugindo aos desgostos da rua, pudesse refugiar-se com o seu tédio, porque na própria casa onde morava é que a má vontade mais se assanhava contra ele; o infeliz em troca de toda a sua dedicação pelas duas desgraçadas senhoras que tomara à sua conta, só recebia constantes e inequívocas provas de ressentimentos e até de ódio.

Ah! o Coruja estava bem convencido de que aquela gente, se não precisasse dele para não morrer de fome, também o enxotaria de junto de si, como se enxota um cão impertinente.

E, pois, sem carinhos de espécie alguma, sem o menor consolo, lá ia vegetando entre aquela família, que não era sua senão no peso, e entre aquela mesquinha e perversa humanidade, que o apupava, que o insultava e que nunca lhe estendera a mão com outro fim que não fora pedir uma esmola ou dar uma bofetada.

Isto, além de o tornar mais sóbrio, afrouxava-lhe a coragem, enfraquecia-lhe o caráter, a ponto de lhe trazer um mal, que ele até ai não conhecia: a revolta contra a própria sorte e o desamor à vida.

Dera para resmungão: falava só, gesticulando zangado; afetava contra seus semelhantes uma grande raiva toda de palavras, desesperando-se ainda mais por não poder deixar de ser bom, por não poder dominar o seu irresistível vício de socorrer os desgraçados e despir-se de tudo para suavizar as necessidades alheias; sofrendo por não conseguir ser mau como qualquer homem e procurando esconder da vista de todos as boas ações que praticava, como se procurasse esconder uma falta vergonhosa e humilhante.

E tal era agora o seu empenho em disfarçar a bondade que, um dia, depois de muito discutir com um taverneiro, a quem ele não pagara no prazo marcado uma velha conta de vinho, feita pelo marido de Inez, viram-no por-se a rir, estranhamente satisfeito, porque o credor lhe gritara em tom de descompostura:

- Mas eu não devia esperar outra coisa de quem aproveita a moléstia de um desgraçado para se meter com a mulher dele!

Este modo de explicar a residência de André na casa da velha Margarida não pertencia exclusivamente ao taverneiro, mas à rua inteira, e ninguém perdoava àquele a suposta concubinagem.

Mas também se ele, em vez de defender-se de tais acusações, rejubilava-se com elas, mostrando-se pelos homens e seus juízos de uma indiferença de cínico!...

Agora, só um nome tinha o poder de o despertar ainda: o nome de Teobaldo.

Era, porém, tão difícil chegar até Sua Excelência!... havia sempre durante o dia na antecâmara do Sr. ministro tanta gente à espera de chegar a sua ocasião de falar com este!... E durante a noite a casa de Teobaldo tinha um tal aspecto de festa, um tal movimento de casacas e vestidos de seda, que o Coruja muito poucas vezes se animou a procurar o amigo depois da mudança.

- Mas para que iludir-se? Teobaldo não podia gostar de semelhantes visitas!

E, com efeito, a presença de André o constrangia bastante.

Não que já não o estimasse de todo; ao contrário sentia prazer em vê-lo, de vez em quando, apertar-lhe a mão e trocar com ele idéias que não trocaria com ninguém; gostava ainda de arrepiar os arminhos do seu espírito roçando a lixa daquele caráter de ferro; gostava de ouvir-lhe aquelas meias palavras, sinceras e ásperas; preferia ainda um gesto de aprovação feito pelo Coruja a quantos elogios lhe fizessem os outros; gostava muito de tudo isso, mas não ali, em presença de tantas testemunhas e exposto ao ridículo.

Estimava-o, não havia dúvida que o estimava, porém sentia-se mal à vontade e aborrecido, quando o pressentia chegar pelo barulho da sua grossa bengala de coxo.

Tanto que uma ocasião, vencendo todos os escrúpulos, disse-lhe abertamente:

- Queres saber de uma coisa, André? Desconfio que estas visitas que me fazes são para ti um verdadeiro sacrifício! Acho que o melhor é procurar-te eu em tua casa, de vez em quando, hein? Que achas?!

- É! resmungou o Coruja, abaixando a cabeça.

- Não te parece melhor?... Bem sabes que sou o mesmo; sou teu amigo e no meu conceito estás acima de todos, mas é que aqui não conseguimos nunca ficar à vontade; não podemos. conversar livremente, e deves concordar que isto para mim é nada menos que um martírio! Que diabo! Prefiro não te ver senão quando estivermos a sós, completamente a nosso gosto! Não és da mesma opinião?

Coruja mastigou algumas palavras em resposta, sem levantar os olhos, muito vermelho, e depois retirou-se, todo atrapalhado à procura do chapéu que ele aliás conservara debaixo do braço durante a visita.

E foi quase a correr que atravessou a chácara e ganhou a rua, como um criminoso que foge do lugar do delito.

Notaram em casa que ele esse dia falou e gesticulou sozinho mais do que era de costume, com a diferença que desta vez os seus solilóquios acabavam sempre em lágrimas.

Dois meses depois, em um domingo, Teobaldo fora surpreendê-lo em casa às nove horas da manhã.

Ia de chapéu baixo, fato leve e bengalinha de junco. Em vez do cupê, que costumava usar com duas ordenanças, vinha de tílburi.

Entrou gritando desde a porta da rua pelo Coruja:

- Onde estava aquele malandro! Talvez ainda metido na cama!? Pois que não fosse tão epicurista e viesse cá para fora receber os amigos!

André, que trabalhava fechado no quarto, largou de mão do serviço e correu ao encontro dele; ao passo que Inez fugia para junto da mãe, muito sobressaltada por aquela voz argentina e cheia de vida, que espantava a miserável tristeza da casa com a sua risonha expressão de estroinice fidalga.

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