sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Leitura 39

- Ora venha de lá esse abraço, mestre Coruja!

E assentando-se com desembaraço em uma cadeira da sala de jantar:

- Sabes! Vim disposto a almoçar contigo. Hoje estou perfeitamente livre; minha própria mulher supõe-me fora da cidade. Ninguém desconfia de que eu estou aqui. Ah! eu precisava passar algumas horas completamente despreocupado, precisava descansar e então lembrei-me de fazer-te esta surpresa; cá estou!

Ergueu-se, foi até ao parapeito do quintal; esteve a olhar por algum tempo para um tanque cheio de roupa que lhe ficava defronte dos olhos e disse depois suspirando:

- Como tudo isto é bom e consolador! É como se eu voltasse ao meu passado; estou vendo o momento em que entra por aquela porta, com a sua lata na cabeça, aquele velho que nos levava todos os dias o almoço e o jantar. Como se chamava, lembras-te?

- Sebastião.

- Era isso mesmo. Sebastião. Muito fiz eu sofrer o pobre diabo! Recordar-te de uma vez em que o obriguei a improvisar um bestialógico encarapitado sobre a mesa e com uma garrafa equilibrada na cabeça? Bom tempo!

Coruja erguera-se para ir à cozinha ver o que havia para almoçar, mas o outro, percebendo-lhe a intenção, gritara:

- Olha! Vão chegar aí umas coisas que mandei vir do hotel.

- Bom, disse André, risonho como havia muito tempo não o viam, porque o nosso almoço, força é confessar, não vale dois caracóis!

- Com certeza já tivemos outros piores! Replicou Teobaldo, encaminhando-se também para a cozinha. Deixa estar que ainda havemos de fazer aqui um jantar. Nós dois!

- Quando quiseres!

- Nós dois é um modo de dizer! Tu não entendes patavina a respeito de cozinha!

- Mas posso servir de teu ajudante.

Pouco depois chegou a encomenda do hotel. Teobaldo foi por suas próprias mãos abrir a caixa da comida e, para cada prato que tirava de dentro dela, tinha uma exclamação de afetado entusiasmo:

- Bravo! bravo! Bolinhos de bacalhau! Costeletas de porco! Maionese de camarões! Peixe recheado! Pato assado!

E, tão à vontade se mostrava na pobre casa de D. Margarida, que ninguém diria estar ali o ministro mais amigo da etiqueta, mais apaixonado pela sua farda e pelas suas bordaduras de ouro, como por tudo aquilo que fosse brilhante, luxuoso e ofuscador.

- Como vai a velha? perguntou ele.

- Assim, respondeu Coruja. Pouco melhor.

- Ah! está doente?...

-- Ora! Pois então não sabes? Eu já te falei nisso por mais de uma vez.

- É exato, agora me lembro.

- E a filha?

- Essa esta boa. Vou chamá-la.

- Não, deixa-a lá por ora. Virá depois. Olha. Recomenda-lhe que nos arranje o almoço, enquanto conversamos no teu quarto. Onde é?

- Aqui. Entra.

No quarto, o ministro, sem se mostrar nem de leve impressionado pelo aspecto de miséria que o cercava, tirou fora o paletó e pôs-se a examinar o que havia sobre a mesa do Coruja.

O grande maço de anotações históricas, já suas conhecidas, era a coisa mais saliente entre todo aquele oceano de papéis e alfarrábios.

- Está muito adiantado? perguntou, batendo com o dedo sobre as notas.

- Pouco mais. Ultimamente não tenho podido fazer quase nada. Ainda me falta muito para concluir a obra.

- Pois é tratares de concluir, que eu te arranjarei a publicação dela à custa do governo.

- Prometes!

- Ora!

- Ah! só assim tenho esperanças de não perder o meu trabalho, porque juro-te que já ia-me fugindo o gosto...

- Podes ficar certo que a tua história será impressa.

- Não calculas o alegrão que me dás com essas palavras!

- E então digo-te mais: a obra será adotada na Instrução Pública e transformar-se-á para ti em uma mina de ouro!

- Que felicidade!

- Hás de ver!

E na sua febre de fazer promessas agradáveis, Teobaldo perguntou a razão por que o amigo não se metia aí em qualquer repartição do Estado.

- Ora, que pergunta! Bem sabes que não é por falta de esforços da minha parte...

- Pois digo-te que agora também serás empregado. É verdade que a época não é das melhores para isso: os bons lugares estão todos preenchidos, mas.

- Não! qualquer coisa me serve... declarou André. Tu bem me conheces; desde que não haja necessidade de concurso...

- Que diabo! Se eu pensasse nisto há mais tempo, já podias até estar com o teu emprego.

- Olha! Vê se me arranjas alguma coisa na Biblioteca. Isso é que seria magnífico!

- Homem! e é bem lembrado. Havemos de ver.

Assim conversaram até a ocasião de irem para a mesa.

O almoço foi alegre e comido com bastante apetite. Inezinha preparou-se antes de aparecer ao senhor ministro, mas, apesar das insistências deste, não tomou lugar à mesa, para ficar servindo.

Dona Margarida, lá mesmo da cama onde continuava amarrada pelo reumatismo, dirigia o serviço, lembrando de quando em quando à filha tudo aquilo que podia ser esquecido.

- Areaste o paliteiro? perguntava ela do quarto. Se não areaste é melhor por o outro de louça, que está na gaveta do armário.

- Já pus, sim senhora.

- Não te esqueças dos guardanapos. Os melhores são os de debrum encarnados.

- Eu sei, mamãe.

- Olha que o café esteja pronto quando eles acabarem! Mas o Sr. Teobaldo talvez prefira o chá. Pergunta-lhe.

- Café! café! respondeu o próprio Teobaldo, de modos a ser ouvido pela velha.

E então uma conversa de gritos se entabulou entre os dois.

-S. Exa. nos desculpe, pedia a dona da casa, bem sabe quais são as nossas circunstâncias!

- Ora, por amor de Deus, D. Margarida! Acredite que há muito tempo que eu não almoço tão bem ou pelo menos com tamanho prazer.

- Que diria se eu não estivesse presa a esta cama! Não acredito que Inez tenha dado conta do recado!

- É uma injustiça que faz á sua filha. Está tudo muito bom.

E dirigindo-se a Inez:

- Tenha a bondade de levar este cálice de vinho à senhora sua mãe que eu vou beber à saúde dela.

- Não sei se não me fará mal! gritou logo a velha.

- Este só lhe pode fazer bem, respondeu Teobaldo, é uva pura!

Depois do café, Teobaldo esteve alguns instantes no quarto da velha, pediu-lhe licença para lhe deixar sobre a cômoda uma nota de cinqüenta mil réis, dinheiro que ele depositou ao pé de um velho oratório, dizendo:

- É para a cera dos seus santos.

A velha agradeceu muito comovida e teria contado pelo miúdo da sua história, se a visita não arranjasse meios de afastar-se, declarando que ia para o quarto do Coruja encostar um pouco a cabeça.

E Teobaldo, tendo ainda conversado com o amigo enquanto dava cabo de um charuto, estirou-se melhor no trôpego capanê em que estava e adormeceu profundamente.

Coruja veio na ponta dos pés até à sala de jantar e, concheando a mão contra a boca, disse em voz baixa:

- Agora, nada de barulho, que Teobaldo está dormindo!

XXIV

Teobaldo, durante o pouco tempo em que esteve no ministério, grangeou as simpatias de toda a nação.

Parecia ser querido e apreciado desde pelo seu monarca, até pelos últimos serventes de secretaria; os empregados das repartições sujeitas ao seu mando adoravam-no.

A todos conquistara ele com aquela proverbial afabilidade e com aquela sua irresistível sedução de maneiras; os velhos chamavam-lhe colega na prudência e na reflexão; os moços no entusiasmo e no modernismo das idéias; a una e outros cegara o seu inestimável talento de adoção, que era toda a sua força e a sua principal arma de conquista.

Sem fazer nada, parecia fazer tudo, porque nas câmaras a sua palavra era sempre a mais destacável entre os colegas.

Além de que, afetava uma grande atividade espetaculosa; não havia inauguração de estrada de ferro, ou de qualquer fábrica industrial ou coisa deste gênero, que ele não acompanhasse de corpo presente, fingindo ligar a isso grande atenção e derramando-se em longos discursos talhados ao sabor do auditório que encontrava.

E ainda uma circunstância, independente de sua vontade, veio completar o prestígio dele e solidificar a simpatia que o público lhe dedicava, acrescentando-lhe à fama, já não pequena, uma glória que lhe faltava ainda e que, pela raridade, seria talvez a melhor e mais desejada - a glória de ser um ministro notoriamente honrado.

Até aí era aclamado como bom patriota, ministro de talento progressista e ativo; de então em diante ficou tendo, além de tudo isso, o prestígio de homem de bem.

Foi o caso que um inglês, representante de certa companhia, desejava obter do governo concessão para uma empresa, da qual Teobaldo fruiria lucros de sócio, ou quando não, uma recompensa de trezentos contos de réis.

Depois de várias negaças de parte a parte, o ministro convidou o inglês e mais outros interessados no negócio para um pequeno jantar em sua casa.

Antes da sobremesa quase ou nada se conversou a respeito do único assunto que os reuniu ali; apenas alguma frase destacada fazia desconfiar que entre eles havia qualquer intenção escondida; mas, quando Branca, que presidia ao jantar, erguera-se da sua cadeira, pedindo licença para deixá-los em liberdade, o inglês entrou abertamente na questão e declarou que estava disposto a não se separar de Teobaldo sem levar consigo uma resposta definitiva.

- O Sr. ministro, concluiu ele na sua meia língua, se proteger o negócio só pode com isso fazer bem, tanto a si como aos outros.

Teobaldo lembrou que ia expor o seu nome; talvez desmoralizar-se para sempre.

- Sim, talvez, volveu o inglês, mas com certeza V. Exa. fica com a vida segura e garantida. Além de que, semelhante particularidade jamais cairá no domínio público! Oh! a política do Brasil está cheia de exemplos muito mais escandalosos, e não me consta que nenhum dos seus autores ficasse desmoralizado; ao contrário criam novo e maior prestígio quando enriquecem!

Afinal, Teobaldo prometeu dar no dia seguinte uma decisão. O inglês que o procurasse na secretaria à hora da audiência.

Um comentário:

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