terça-feira, 15 de setembro de 2009

Leitura 30

- Se eu não conseguir levá-la ao cabo, dizia ele. aí fica bom material para quem o souber aproveitar, dando-lhe a forma literária, que é só o que lhe falta.

E isto que ele dizia a respeito da carcassa da sua obra capital, verificou-se logo com os seus apontamentos sobre questões sociais: um dia Teobaldo fez-lhe algumas perguntas a respeito de elemento servil, locação de serviços e colonização. Coruja satisfez as perguntas do amigo e declarou que tinha consigo algumas notas tomadas nesse sentido.

Os dois subiram ao cubículo de André, e este sacou de uma gaveta de sua velha secretária um grosso pacote, composto de pequenos maços de tiras escritas, sobre cada uma das quais via-se metodicamente lançado um título diverso.

Teobaldo começou a manusear os maços.

Leu o primeiro: "Indústrias", no segundo: "Manufaturas", leu em outro: "Escravidão" e em outro: "Instrução pública".

E continuando a percorre-los, foi encontrando:

"Pequena lavoura - Nacionalização do comércio a retalho - Nunes Machado e seu tempo - Economia rural, decadência do açúcar, nota sobre o inquérito do governo - Exploração do gado lanígero - Administração dos correios - Legislação territorial - Cultura do bicho-de-seda - Plantação da vinha - Colonização, reflexões sobre as cartas do marquês de Abrantes - Discursos sobre o elemento servil por Bernardo de Vasconcelos, Euzébio de Queiroz e João Maurício Vanderley - Guerra do Rosas."

E assim por diante.

- Que diabo tencionas tu fazer disto? perguntou Teobaldo.

- Nada, respondeu André, são notas de considerações, que às vezes acodem e que a gente vai colecionando, para, se algum dia precisar...

- Mas é um tesouro isto que aqui tens!... Deves publicar estas notas!

- Qual! Não despertariam interesse em ninguém; falta-lhes forma literária, não passam de apontamentos; datas, nomes, citações, discursos políticos e nada mais.

- Ora! a forma literária é o menos. Isso arranja-se brincando.

- Pois se quiseres arranjá-la..

- Homem! Está dito! Publicam-se com um pseudônimo. Vais ver o barulhão que isto faz aí!

- Não creio.

- E eu tenho certeza; só com uma vista dolhos já percebi que tomaste nota de todos os fatos mais curiosos de nossa administração pública nestes últimos tempos.

- Ah! Isso é exato; estas notas foram escritas à proporção que se sucediam os fatos, e cada uma tem ao lado as considerações que a respeito dela fez a imprensa.

- São minhas! resumiu Teobaldo, guardando na algibeira as notas do Coruja.

Daí a dias surgia em público o primeiro artigo dos de uma longa série que então se publicaram e que estavam destinados a dar ao marido de Branca uma nova reputação, uma reputação que ele ainda não tinha: - a de homem de bom senso prático e econômico.

As conscienciosas notas de André, floreadas pelas lantejoulas da retórica do outro, converteram-se no objeto da curiosidade pública.

Foi um verdadeiro sucesso; o jornal que as publicou viu a sua tiragem aumentada e os artigos, uma vez colecionados em volume, deram várias edições.

Daí nasceu o prestígio de Teobaldo entre os homens públicos do seu tempo, que desde então começaram a respeitá-lo, se bem que o habilidoso jamais declarasse positivamente ser o autor dos célebres artigos.

Branca, porém, sabia ao certo a quem eles pertenciam de direito e ficou muito seriamente indignada contra o marido uma vez em que este, depois de negar a pé junto que não era o autor dos tais artigos, respondera a um tipo que exigia nesse caso que ele desse a sua palavra de honra.

- Não! isso não! afianço que os artigos não são meus, mas, quanto a dar palavras de honra, não dou!

O fato é que ele ficou sendo desde então considerado uma das primeiras ilustrações do Brasil, tendo ao seu dispor o jornalismo em peso e ao seu serviço a proteção dos homens mais influentes na política.

Podia enfim alargar os seus horizontes e desejar mais largos apesar do seu espírito ser tão inconstante e a sua ambição tão desnorteada.

Agora já não pensava mais em se fazer dono e redator de um jornal; vivia só para uma idéia: entrar na câmara dos deputados.

Um terrível contratempo veio, porém, alterar-lhe a vida.

Nessa ocasião, em vista dos efeitos da guerra, esperava-se que o preço das libras esterlinas subisse extraordinariamente, e Teobaldo, fiado nisso, empregou a melhor parte do que lhe restava em comprar uma boa porção delas para as revender com lucro fabuloso; eis, porém, que a subida inesperada do partido conservador, firmando o crédito do estado, elevou o papel-moeda, deixando o câmbio quase ao par, depois de verificado o empréstimo do Visconde de Itaboraí, do qual se conservou a popular denominação de "bonde em ouro".

Por conseguinte, o dinheiro arriscado nessa especulação de cambiais não foi recuperado; as libras, que aliás haviam chegado excepcionalmente ao valor de 15$ cada uma, desceram de repente e foram vendidas por muito menos do custo.

Teobaldo viu-se perdido. Além de ficar completamente despido de dinheiro, ainda tinha de apresentar seis contos de réis ao seu fornecedor de café em certo dia convencionado, sob pena de perder também o crédito, que era a coisa única com que podia ainda contar para a sua reabilitação.

No entanto só o Coruja, o Aguiar e Branca sabiam da verdade inteira a respeito disso; de todos os mais Teobaldo escondeu a sua crítica situação, convencido de que tudo perdoam aos homens, menos a infelicidade.

Este fato de ter de esconder o seu desespero ainda mais o fazia sofrer, enchendo-lhe as horas de amargura e sobressalto.

Foi então que o Aguiar se chegou para ele e disse, batendo-lhe no ombro:

- Ora, se a questão é de seis contos de réis, não tens que te afligir, eu tos empresto; teu crédito não ficará abalado!

Teobaldo abraçou-o, declarando que o Aguiar acabava de lhe salvar a honra.

- És um verdadeiro amigo! disse-lhe. Se não foras tu, era natural que eu metesse uma bala nos miolos!

Quando Branca se achou a sós com o primo, apertou-lhe a mão muito comovida e repetiu pouco mais ou menos as palavras do esposo.

- Engana-se, respondeu o Aguiar, não foi por ele aquilo, foi simplesmente em honra da senhora.

- Não é então amigo de Teobaldo?

- Eu o detesto.

- Foi nesse caso só por mim que o socorreu?

- Bem sabe que sim.

E chegando-se para ela, acrescentou em voz baixa:

- E que não faria eu por sua causa? Terei porventura alguma outra preocupação que não seja tornar--me aos seus olhos cada vez mais digno? Terei maior ambição do que vê-la satisfeita comigo e perdoando-me o estimá-la mais do que me é permitido... E tanto assim que nada mais lhe peço além de declarar com franqueza o que quer que eu faça; ordene e ver-me-á submisso e escravo a seus pés cumprindo as suas leis.

- Não tenho ordens para lhe dar, nem direito para isso, apenas desejo que meu primo continue a ser meu amigo, e, visto que não está nas mesmas circunstâncias em que eu estou para com Teobaldo, perdoe-lhe as franquezas e as maldades.

- Não! Eu só perdoaria àquele vaidoso se ele a deixasse em paz!

- Não o compreendo e peço licença para retirar-me, sinto-me indisposta; meu marido não tarda aí e far-lhe-á companhia.

Branca afastou-se tranqüilamente, sem se mostrar nem de leve receosa das seduções do primo; ao passo que este, sufocando a sua impaciência, deixou-se ficar imóvel no lugar em que estava, a fitá-la pelas costas com o seu comprido olhar de homem teimoso e vingativo.

Que pensará de mim esta mulher? interrogou ele intimamente, cruzando os braços no meio da sala. - Que idéia fará da minha vontade e do meu querer? Pois não perceberá ela que eu, odiando o marido, não faria por este o menor sacrifício, se não fora a esperança de saciar o amor que me põe louco? É impossível que Branca, tão inteligente e tão lúcida, não me compreenda e não perceba as minhas intenções! É impossível que ela me suponha tão fácil de contentar que eu só exija de sua pessoa um casto e fraternal reconhecimento! Ah! mas agora, agora que os tenho seguros por uma dívida de meia dúzia de contos de réis, hei de chegar aos fins a que desejo ou muito terão eles de amargar!

Fazia tais reflexões, quando Teobaldo entrou da rua.

Vinha extremamente pálido e, pelos modos, bastante contrariado.

- Oh! que tens tu? perguntou-lhe o outro, indo ao encontro dele. Estás com uma cara! Alguma coisa te contraria ainda?

- Nada!

- Desconheço-te, homem!

- Nada! não tenho nada! necessidade de repouso.

- Nesse caso, retiro-me...

- Não. Fica à vontade.

- Julgas que é muito agradável suportar-te neste estado?...

- É exato. Confesso que estou preocupado. Mais tarde saberás por que.

- Bem; não falemos mais nisso e conversemos sobre outra coisa.

Mas, daí a meia hora, dizia o Aguiar:

- Não! Tem paciência! Hoje não posso contigo. Adeus. Voltarei quando estiveres mais admissível.

Teobaldo, mal viu sair o amigo, meteu-se no seu gabinete de trabalho, acendeu o gás, fechou-se por dentro e pôs-se a reler uma carta, que tirara da algibeira.

Era uma carta anônima e dizia o seguinte:

Meu adorável Teobaldo.

O feitiço vira-se às vezes contra o feiticeiro: tu, que tens destelhado a valer a honra de vários maridos, estás agora com a tua exposta à chuva e aos ventos... Olha que lhe fazem cada rombo, que até da rua a gente os vê!...

E a graça, adorável Teobaldo, é que deves esse obséquio ao teu melhor amigo, ao teu intimo, ao teu unha com carne! Coitado do meu Teobaldo!

Se exiges provas do que dizemos, estamos dispostos a dar-tas quando quiseres."

Assinava - Uma das vítimas dos teus encantos.

XIII

Depois da nova leitura da carta anônima, Teobaldo mergulhou mais profundamente na sua preocupação.

- O meu melhor amigo... o meu íntimo!... repetia ele, como um sonâmbulo. Trata-se por conseguinte do Coruja ou do Aguiar! O Aguiar!... não! não é possível!... e contra o outro não me animo sequer a levantar a ponta de uma suspeita!

Um comentário:

  1. QUERIDO ALUNO, AO FAZER O SEU COMENTÁRIO, NÃO DEIXE DE COLOCAR NOME, NÚMERO E SÉRIE.

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